SONHOS REAIS


Quando for grande quero ser como Sophia e inventar estórias de meninas que querem ser ricas, bonitas e princesas. Também quero viver em castelos ou palácios sumptuosos e forrar as paredes inteiras do meu quarto com espelhos que me mostrarão o quanto bela eu sou e aos quais perguntarei: “quem é a mais bonita mulher deste reino?” Espelhos que me responderão transparecendo imagens reais, não destorcidas ou fictícias de uma realidade que será a minha: que sou eu.

Quero, sim, viver como Lúcia em palácios rodeados de jardins, com muita luz a entrar pelos quartos adentro, muitas salas e salões para bailes e festas, com pianos de cauda e harpas a um canto – para animar os bailes – e com longos corredores percorridos por criados que com bandejas nas mãos nos servirão canapés e taças de vinho branco. 

Quero, sim, viver a fantasia de príncipes encantados que me arrebatarão à vida fútil que levo e me levarão para o meio da sala de baile, me farão rodopiar, dançando ou me ensinando a dançar, calçada ou descalça, entre gente cheia de glamour que nos olhará com espanto para a gloriosa beleza dos passes ensaiados.

Quero também trajar roupas bonitas, vistosas, cheias de rendas; adornadas com joias e colares que reluzem em pedras preciosas – e que brilhem como um astro – mesmo sabendo que o reflexo possa ser apenas o da lua reflectindo a luz, que não é sua, no lago do meu jardim.

Quero ainda sentir o êxtase dessas noites de festa, repetidas vezes, vezes sem conta, projectando com luz, mesmo que fingida, esse meu futuro resplandecente como sendo o de uma mulher querida e adorada por todos.

E de dia, de dia quero ver e sentir os pássaros a chilrearem por ali, esvoaçando de galho em galho. Quero perscrutar o som das águas a cair em cascata na fonte. Quero passear-me na sombra das árvores ancestrais que delimitam o meu jardim e inalar com paixão os perfumes odoríficos das flores que em organizados canteiros serpentearão o meu caminho em momentos estonteantes que darão corpo à minha ilusão.

Quero, sim, quando for grande, ter esquecido esta casa pobre de telhado de zinco e pisar então um chão de pedra forrada de granito onde paredes e tectos rebordados a rococós enfeitarão o meu novo mundo. Dentro dela, os espelhos farão de mim uma mulher de sonho, a princesa, digo, a rainha, a mais bela, a mais desejada, a mais perfeita das mulheres que alguma vez estiveram diante daqueles espelhos.       

Sentindo os pés frios, descalça, acordei, atónita, em cima da cama, saída de um emaranhado de sonhos em que Sophia, minha mãe, como um espelho, se chega e me abana fazendo-me regressar ao que sou.

– Acorda, Lúcia. – Disse-me ela – São horas de te arranjares para o baile de finalistas. A tua madrinha já está à tua espera para te levar.

Olho em volta, aturdida e, aos poucos, apercebo-me do caminho pelo qual os meus sonhos me levaram. Tomo consciência do rumo que seguia e da desgraça, rodeada de espelhos cheios de inveja, desde o poder ao desespero e ganho a ideia de que fui acordada a tempo... e a tempo, sem desmoronar os sonhos, de descobrir  o verdadeiro lugar onde pertenço.

- Vá lá, Lúcia, despacha-te, tens ali o teu vestido lilás. Veste-o.
 
Nota: baseado numa história de Sophia de Mello Breyner Andresen

Comentários

  1. Os sonhos não deixam de ser sonhos, mas , por vezes, sentimo-nos bem ao acordar. A vida não é só trabalho, rotinas, mas coisas que também gostamos de fazer e, por esta ou outra razão, não fazemos. Que se cumpra então o Sonho! Abraço

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    1. Obrigado pelo comentário. Sim, os sonhos são como os pensamentos: estão apenas na nossa cabeça. Mas são um bálsamo para a nossa vida, quando são bons.

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