"O REINO ONDE NÃO FORAM FELIZES PARA SEMPRE"



Era uma vez um rei e uma rainha que viviam num grande castelo de uma pequena ilha, muito, muito distante de nós e que se situava no meio de um oceano chamado Atlântico. Estamos em pleno século de um tempo que nunca existiu, atrás da nossa memória.
Ele era o Rei Marcus, homem bom, mas teimoso. Não era um homem robusto, de barbas grandes e austero, de rosto enrugado, típico dos reis que conhecemos dos outros reinos, mas impunha o seu respeito aos demais: era um homem de poucas palavras, tinha uma figura esguia e o cabelo curto e escasso. Ela, por outro lado, era uma mulher muito bonita e elegante. Isis, de seu nome, era uma rainha esbelta, formosa, de traços perfeitos, de sorriso fácil. Muito paciente, simpática e acessível para as pessoas, era por isso muito admirada e estimada por todos. Já o nosso rei, sempre sisudo e mal disposto, não cativava tanto as pessoas. No entanto, sua alma era afinal tão frágil, como de um humilde homem, e apenas se escondia atrás dessa máscara austera para se demarcar dos que lhe queriam roubar o trono.

A ilha onde viviam era verde e encantada: as árvores eram grandes e imponentes onde as criptomérias sobressaiam. Os prados, extensos recortados por muros de pedra e os campos, na primavera, cheios de flores de todas as cores, onde se destacavam as hortênsias: cada conjunto mais lindo que o outro. Vivia-se num paraíso onde os vários tons dos verdes se misturavam em cenários edílicos de beleza digna de uma tela pintada.
Por ali, com frequência, se viam pequenos coelhos que saltitavam pelas pernas das pessoas, atravessando-se no caminho destas e fugiam, lestos como lebres, escondendo-se atrás dos arbustos. Era como se estivessem a brincar uns com os outros e a desafiarem quem aparecia. Era, por isso, maravilhoso poder ficar ali parado, uns instantes, a olhar para eles naquelas correrias furtivas por entre o arvoredo, como se, com o olhar, as pessoas fossem verdadeiros predadores daquelas pequenas e redondas figuras saltitantes de pêlo acinzentado.

Também havia uma montanha, enorme, tão enorme que ia quase até ao céu. Pelo menos assim parecia vista cá de baixo. Ninguém se atrevia a subi-la porque ela deitava fumo de vez em quando: dizia-se que era quando estava zangada, e temia-se que ela cuspisse lava, como já acontecera, se alguém a desafiasse, escalando-a. Assim aquela sumptuosa montanha erguia-se no meio da ilha e dominava toda a paisagem, como um vulcão meio adormecido que todos temiam, e destacava-se recortada na paisagem deslumbrante e magnífica da ilha.

Os cheiros a campo e a terra molhada eram intensos e o aroma suave de flores campestres inalava-se e sentia-se como em nenhum outro lugar do mundo. Se imaginássemos um paraíso na terra seria aqui neste lugar, nesta ilha muito distante com uma montanha a vigiar todo o horizonte.

Nesta ilha longínqua, as pessoas eram quase todas felizes, viviam bem e no reino respirava-se paz, amor e harmonia. E as pessoas não eram todas felizes porque, como em todos os reinos, terras e mares, há pessoas más que vivem apenas na sombra para fazer mal aos outros. Acabam por destruir a natureza, os jardins, sujam os caminhos e só atrapalham a vida daqueles que querem construir os parques, as aldeias, as casas e viver uma vida em paz aproveitando as coisas boas que a natureza tem para dar.

Mas o rei Marcus e a rainha Isis procuravam o entendimento de todos e viviam na tolerância e com o espírito construtivo de quem queriam que todos fossem felizes, como eles eram. De facto, podia-se dizer que aqueles reis eram o casal mais feliz da ilha e, se calhar, do resto do mundo. Não por serem rei e rainha, mas porque o amor que sentiam um pelo outro era realmente muito grande e invejável.
Apesar de bastante mais velho que ela, o rei Marcus, com a maior das ternuras, dizia-lhe muitas vezes: “que se houvesse uma eleição sobre quem eram, à face da terra, os dez homens mais felizes do mundo, ele seria um deles”. Da mesma forma, e como a amava profundamente, também lhe dizia: “que se houvesse na terra uma eleição sobre quem eram as dez melhores mulheres do mundo, ela seria uma delas, eleita e destacada das demais”.

O amor que sentiam um pelo outro não parecia terreno, mas espiritual; era um amor divino, como uma bênção de Deus. Amavam-se e até fizeram pactos e juras de que seriam um do outro para o resto das suas vidas, sendo realmente as pessoas mais felizes desde ali até ao infinito.

E foi neste espirito de profundo e intenso amor que um dia, depois de uma viagem pelos mares que atravessavam o seu reino, no cansaço desta, deitaram-se exaustos, mas antes de adormecerem entregaram-se e entrelaçaram-se em promessas de amor e o rei beijando sua esposa Isis disse-lhe que lhe ia dar um filho.

E assim aconteceu. De facto, a rainha ficou grávida e uns meses depois nasceu uma menina. Diziam que a rainha não podia ter filhos e todos acharam que foi um milagre aquele nascimento. Fizeram uma grande festa  e decidiram chamar-lhe Madalena, em honra ao lugar onde se conheceram.

Madalena tornou-se numa criança fantástica, linda como a mãe, muito inteligente e com grande capacidade para ajudar as outras crianças, sempre pronta a dar-lhes conselhos e a ser amiga delas.

Mas chegou um dia malvado, que ninguém imaginara viver alguma vez, em que o paraíso se transformou num inferno. Quando nada o fazia prever, o vulcão adormecido acordou e começou a expelir fogo. Estavam todos a dormir e foi trágico e diabólico o que se seguiu.

As pessoas começaram a fugir e o rei providenciou que sua esposa e filha saíssem dali no primeiro barco para terras distantes, para fugir à catástrofe que aí vinha; mas ele teria que ficar, como rei, para organizar a população e seria o último a deixar a ilha. E assim aconteceu. Milagrosamente não morreu ninguém. Por fim, meteu-se a caminho em busca da sua mulher amada e da sua filha que o esperariam do outro lado do mundo.
Tinha-se passado algum tempo e não as encontrou, à sua espera, quando desembarcou naquele outro reino, do outro lado do mundo, onde foram acolhidos. A rainha estava diferente, era como se não fosse a mesma mulher e tivesse perdido o brilho no olhar. Disse-lhe, depois de alguma insistência dele, que já não o amava. O rei Marcus empalideceu, estremeceu, mais do que na noite em que o vulcão explodiu e não acreditava no que os seus ouvidos lhe diziam. Não podia ser, algo de muito estranho se passara para haver tão radical mudança. Seriam os ares da mudança que lhe teriam feito mal? Com que companhias sua esposa se aconselhara e intimamente se relacionara para tomar tais atitudes? Ela que tinha sido, em tempos passados, a melhor mulher do mundo, que tinha sido a mulher dos seus sonhos, onde estava ela agora?

Afinal, aquela mulher tão especial e diferente que o rei Marcus conhecera, era agora uma mulher vulgar, igual a tantas outras. Uma mulher que se perdera na ilusão da sua juventude por amores provavelmente interesseiros de um “Apolo” de conveniência. Alguém que não só a soube cativar e atrair para si como lhe dividiu a alma com promessas de um futuro mais risonho.
O rei Marcus estava de rastos, completamente desorientado. Perdera o trono, a mulher e a filha que ficara com a mãe e viu-se, num repente, dentro de um sismo humano, perdido e só no mundo, sem nada, sem objectivos, sem reino, sem amor, sem paz. Pensou nessa altura que teria sido melhor ter sido engolido pelo vulcão e passou grande parte do que restou da sua vida a chorar pelo que perdeu e pela sua pouca sorte e infelicidade, como uma verdadeira tragédia para a sua vida. Não desejava a ninguém o sofrimento por qua passava, eram momentos de profunda amargura, tristeza e desilusão.  

Mas certo dia o velho rei Marcus acordou desse pesadelo que o atemorizava, abriu os olhos e pensou que aquilo tinha que ter um fim. Não podia continuar a sofrer por quem não merecia. Sentiu-se com a coragem de um jovem que já não era, com a força de um guerreiro a quem lhe entregaram a espada de combate e com a energia de uma onda de mar revoltosa e capaz de mover um império. De um salto levantou-se da cama onde caíra enfermo e partiu à conquista de outros sentimentos, em outro reino, algures.

Encontramos então o rei Marcus numa viagem de barco à procura do seu destino e lá estava ele a conversar com uma donzela, aparentemente disponível e que engraçara com ele.

Vemo-lo ali muito interessado e entusiasmado pela aparente conquista. Trata-se de uma outra rainha que viaja em companhia da sua família. Parece gente também meio perdida em busca de algo. Não aparentam o que na verdade são: as propriedades, os bens, as riquezas que possuem, mas naquele momento não é isso que é importante. Só mais tarde o rei Marcus se aperceberá disso quando é convidado para um banquete no reino de Dona Maria Sepúlveda, matriarca da família.

Depois de algum convívio com a filha Celeste, com quem travara conhecimento naquele passeio de barco no mar do Olimpo e de criada uma afinidade muito grande com ela, rei Marcus começa a aperceber-se do quanto infelizes são todos. Apesar das suas riquezas, dos bens que têm, dos castelos, dos palácios, falta-lhes, no entanto, o essencial para a vida humana: o amor, o aconchego, o abraço, o colo.

Rei Marcus acaba, no entanto, por se envolver com a rainha Celeste e chega mesmo a ir viver com ela. Ele não tem nada e ela tem tudo para o fazer feliz. Tenta apaixonar-se por ela, mas não consegue porque a nova rainha não deixa que ele se aproxime demais. Primeiro ela diz-lhe que ele é apenas uma visita do palácio, depois porque não gosta de certas manifestações de carinho: um simples beijo incomodava-a, e constantemente o repreendia das suas manifestações, como uma carícia, revelando sempre uma insensibilidade muito grande.
Rei Marcus sofria com aquele comportamento - porque era um homem cheio de amor para lhe dar - e achava-o estranho, mas era capaz de entender que as causas vinham de um passado difícil, com relações de grande sofrimento em que a rainha teria sido apenas vítima de algum trauma que a afectava e a trazia deprimida até aquela altura.

Ele tinha assim pela frente um duplo desafio: conquistar o seu amor e reabilitá-la para a felicidade, além de naturalmente reconquistar o amor e a felicidade que ele também perdera.

E foi o que fez, tentando proporcionar-lhe o que de melhor ele tinha par dar e sabia. Ela foi também correspondendo e aceitando as mudanças e quase que me arrisco a dizer que conseguiram apaixonar-se e amar-se mutuamente: andavam de mãos dadas na rua, passeavam muito, ela tinha projectos para ambos e até adquiriu e restaurou um novo palácio para eles irem viver; sorria agora com mais frequência, arranjava-se, pintava-se, vestia-se melhor: era um gosto vê-la, uma mulher diferente, uma mulher feliz, mais equilibrada. Finalmente, eram felizes.

O tempo passou, mas o amor, no entanto, não cresceu, e ele foi percebendo que tinha perdido o fascínio pela rainha Celeste cuja forma de viver era muito diferente da sua. Não gostavam das mesmas coisas, não sentiam as mesmas palpitações, não estavam unidos pelos mesmos ideais.
Ele gostaria de partilhar com ela o mundo, viajar, conhecer outras paragens, outras pessoas, outras culturas, proporcionar-lhe tudo; ela, não. Agia como uma pedinte e não saía, apenas dormia, como não partilhava um centavo seu com ele. Sim, dava-lhe guarida, oferecia-lhe umas refeições que confecionava a seu jeito, mas podiam fazer outra vida que não aquela. Ele, além de viagens, ainda lhe ofereceu a melhor joia que pode comprar-lhe; ela ofereceu-lhe roupa interior comprada numa loja de feira, e que ele aceitou com o maior carinho. Mas foi este continuado miserabilismo que acabou por mexer com ele. Ela, uma rainha que tinha tudo para ser feliz e fazer alguém feliz remetia-se a uma vida de remendos e de aproveitamento de todos os cacos que lhe davam e que os aceitava como se precisasse deles.  

Tudo se acabaria por recompor não fora quando, certo dia, ele percebeu que a rainha estava louca. Ela quis atirar-se da janela do seu palácio e ele não sabia o que fazer. O seu comportamento não era de uma pessoa normal, era de alguém desequilibrado emocionalmente e o rei Marcos ficou transtornado com a inesperada situação, de demência extrema. Sofreu muito com isso porque, mesmo assim, gostava dela e gostaria de ser capaz de curá-la, de compreendê-la e, com o seu amor verdadeiro, fazê-la uma mulher feliz, como tanto queria. Quis muito ajudá-la a recuperar-se, mas não foi capaz. Sentiu-se extremamente frustrado e até responsabilizado, como se tivesse sido por causa dele aquele acto tresloucado, de avançado estado de dependência.  

Mas a família real Sepúlveda também não se importou muito com o acontecido, como se, tal facto, já não tivesse sido a primeira vez. Por outro lado, rei Marcus nunca se sentira muito apoiado nem como membro integrado da família, nem nas circunstâncias especiais de alucinação e loucura como a que viveu com a rainha Celeste.

Sentiu que o olharam sempre como alguém sem nada para enriquecer mais o património e que pouco ou nada acrescentaria ao poder da Corte. Assim, depressa o pobre e infeliz rei Marcus percebeu que o seu papel se esgotara ali e resolveu pegar nas suas parcas coisas, arranjar uma carroça e ir-se embora, em busca de um outro final feliz.
Não se sabe ao certo onde foi parar o rei Marcus, mas constou que foi viver para debaixo de uma ponte que atravessa a cidade. Houve quem o visse e o ouvisse a resmungar para o Céu blasfemando contra o seu destino porque ele aprendera que o amor vencia sempre, e ao rever as suas próprias histórias de amor da sua vida só conseguia chegar ao fim e dizer: “e não foram felizes para sempre”.

As personagens desta história:

rainha Isis
teve a vida de rainha que ambicionara para ela: viveu sempre sumptuosamente, mas chegou ao fim da sua vida infeliz porque acabara por se arrepender de ter deixado e feito sofrer tanto o homem que verdadeira e incondicionalmente mais a amara.

Madalena
insurgiu-se contra a mãe porque não lhe perdoara o que ela fez ao seu pai, Rei Marcus pelo que ele sofreu até ao fim da sua vida.

Celeste
limitou-se a viver outras paixões carnais, mas foi também infeliz. Viveu a sua vida como ela a imaginava, sempre a não gostar de si mesma e a sentir que os outros a achavam anormal e feia, rodeada dessas pessoas que, no entanto, procuraram apoiá-la, mas que nada puderam fazer além de a colocarem num hospício.

rei Marcus
morreu velhinho, apoiado nos filhos que teve, com a doença do século, infeliz porque chegara ao fim e não se cumprira a promessa que havia feito a si mesmo que “haveria de ser feliz, não sabia como, nem com quem, nem onde, mas que havia de sê-lo”.

Na hora da sua morte, com os filhos ao seu lado, esboçou um sorriso; ninguém soube o que significava ao certo.

Carlos Alberto 03-04-2012
PS1: Esta história é apenas fictícia e não se inspira em factos reais da vida de ninguém. Qualquer semelhança com factos, lugares, nomes ou pessoas reais aqui relatados é mera coincidência literária que não se legitima.

PS2: Este texto não foi totalmente escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

PS3: Gostava de publicar mais textos e poder viver à custa de os escrever. Aceito e admito sugestões, alterações, correções e outros senões a este contributo “literário”. 

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