MEMÓRIAS 2012
Páginas do Meu Diário ( 2º Semestre)
Desta vez deixo aqui os meus melhores resumos do 2º semestre de 2012, de acordo, obviamente, com o critério que defini.
Quinta-feira, 5 de Julho de 2012 (Miratejo, 23:40h)
“Um amor à sombra”
Encontrei-me numa esplanada da praia. Um livro sobre a mesa e
uma bebida que incluía gelo e limão. À minha frente gente que circulava em fato
de banho, ora num ora noutro sentido, pelo paredão que me separava dos areais
brancos até à água do Oceano, lá ao fundo. Na linha do horizonte há um navio de
carga, um petroleiro, daqueles que transportam toneladas de combustível. Há muito
sol, mas eu estou à sombra de um enorme chapéu colectivo preto que cobre uma
grande parte daquele local aprazível. Não está ali mais ninguém sentado; só eu
e o meu livro por desfolhar, poisado sobre a mesa, com o Ginger Ale vertido no
copo alto. É apenas um momento de observação. Dali a pouco dou um trago na
bebida adocicada e abro uma página marcada, já quase a meio do grande volume
que me acompanha. Está um pouco de vento. Na praia adiante há gente espalhada
pelo areal, mas não aquela multidão dos grandes dias de calor. Para trás havia
deixado já um almoço também consumido à beira da praia com o mar em fundo. Só
que aqui não estava sozinho. À minha frente um homem que me chama pai. É boa a
sensação. Trocamos pratos que dividimos para saborearmos o que ambos comemos.
Aqui é com água que empurramos a comida para o esófago. São ainda dois dedos de
conversa sobre assuntos judiciais pendentes. Dou-lhe o meu apoio, atiro-lhe
conselhos, ajudo-o como posso. Recebo em troca a refeição que aquele rapaz faz
questão de pagar-me. Não quero, mas ele insiste. Tenho pena do meu filho. É um
puto que se nota que não está seguro na vida e que não tem certezas de nada.
Sinto que lhe faço falta, apesar de ele já ser um homem de 26 anos. Mas os pais
fazem sempre falta aos filhos. E os filhos farão sempre falta aos pais. Amo-os
a todos e também sinto que gostam de mim. Mas se os filhos não gostarem dos
pais quem é que vai gostar?
Carlos Alberto
Domingo, 29 de Julho de 2012 (Miratejo, 30/07 08:30h)
“Faça você mesmo”
Domingo, fim-de-semana, tempo de descanso, praia, passeio,
convívio, amizades, saídas, oportunidades. Tudo isto e muito mais a preço de
saldo. Basta um telefonema com valor não acrescentado e toda a família tem
direito ao seu pecúlio. Tão simples. Mas se está sozinho, não esteja! Temos
para si a solução com imensas alternativas. Pegue no seu automóvel e dirija-se
a uma qualquer avenida marginal. Estacione o carro em zona visível, abra os
vidros, ligue o rádio com o som bem alto - não se esqueça dos óculos de sol -
coloque o braço esquerdo sobre a janela aberta da porta do veículo e desfrute
de quem passa, olhe o mar ou o rio, e goze o momento de pulmões abertos em
perfeita harmonia com a natureza humana. Se por outro lado é dos que aprecia mais
a calma do campo, vá então até uma qualquer mata próxima de si e estenda uma
toalha debaixo de um pinheiro que não tenha ainda ardido e aproveite o sossego
e a tranquilidade desse espaço ouvindo o chilrear dos passarinhos que de galho
em galho o vão divertindo, esvoaçando e cantando com toda a sua liberdade. Como
vê, a baixo custo pode ter tudo, toda a natureza ao seu alcance. Se mesmo assim
é dos que prefere ficar em casa a ver a televisão, sempre haverá um bom filme
de desenhos animados tipo “Madagáscar”, ou um qualquer jogo de futebol da Ásia
entre clubes de que ninguém ouviu falar, ou então imagens dos Jogos Olímpicos.
Pois, aproveite a vida, não fique deprimido porque há sempre quem esteja pior:
na maca de um hospital, em lista de espera, na sala de observações traumáticas o
que é muito mau. Mexa-se.
Carlos Alberto
Nada é ao acaso. A vida faz todo o sentido. E não é em vão
que agimos, que realizamos as nossas tarefas, que sentimos frio ou o calor.
Lisboa. Uma tarde quente. Gente e mais gente. E eu com tempo. Passeei-me pela
baixa. A máquina fotográfica ficara propositadamente em casa. O objectivo era
outro. O carro ficou estacionado quase ao pé do Castelo de São Jorge. Que belas
imagens se conseguem do Miradouro de Santa Luzia com o Tejo em fundo! Contudo,
um rio quase deserto. Para um estrangeiro que contemplasse aquele espelho de
água deve ter achado algo de estranho: um braço de rio despojado de barcos,
movimento, qualquer faina; estariam de greve? Um cais imenso vazio, sem ninguém,
como se o tempo tivesse parado. Restam os telhados vermelhos do casario
recortado na paisagem mais próxima, a Igreja de Santa Clara e um olhar
transversal por uma cidade de mil encantos. Os eléctricos são também atracção
turística, e uma rapariga vê um a aproximar-se, aponta a sua máquina
fotográfica e acontece algo inesperado: o eléctrico pára, o guarda-freio
levanta o braço, sorri e acena um adeus com a mão enquanto a moça, surpreendida,
dispara e fica a rir-se pelo inusitado. É assim a cidade de Lisboa a vibrar e
com tempo para tudo. Há uma paz e acalmia nas pessoas que desfrutam da paisagem,
e com tempo ainda para ver as inúmeras lojas espalhadas pelos edifícios, muito
velhos, daquela encosta do Castelo e que vendem de tudo. O Martim Moniz ficara
para trás com um sabor azedo de quem se frustra pelas expectativas goradas de
quem espera ser feliz e acaba afinal por se encontrar só com um copo vazio na
mão. Salva-se o passeio, o sentir a cidade neste Agosto pleno de Verão, o beijo
da minha irmã que me adverte de que devo ter muito mau feitio por ainda estar
sozinho, ou então algum defeito tenho. E ela tem razão das duas maneiras. Tenho
não só mau feitio como defeito de ser pouco homem.
Carlos Alberto
Domingo, 12 de Agosto de 2012 (Miratejo, 13/8 01:10h)
“Parabéns Fernando”
A nossa história é a nossa história. Coisas boas e coisas
más, tempos de alegria e glória, tempos de lágrimas e derrotas. Mas estamos
vivos. Não somos super heróis, vedetas no mundo, mas temos alma, paixão,
sentimos o sol, amamos aquilo que temos. Aquilo que não temos não é nosso. O
meu irmão dizia que nós não temos nada, apenas usufruímos as coisas. Pois, é
verdade, mas melhor que usufruir é partilhar e é aí que as pessoas pecam: não
partilham nada do que têm, nem a sua felicidade. Quando estava nos Açores e via
algo maravilhoso, uma paisagem sublime, lembrava-me logo da minha irmã e
telefonava-lhe para partilhar com ela aquele momento. De facto, de pouco nos vale sermos felizes
sozinhos e se não partilharmos com alguém a felicidade que sentimos. Eu gosto muito
de partilhar aquilo que sinto e sempre partilhei, mesmo aquilo que é difícil.
Mas ninguém aprecia o acto de sofrer e vivemos todos na esperança de que
teremos amanhã uma vida boa, cheia, barriguinha bem aviada e o resto, à volta,
não interessará muito. Se ao nosso lado alguém chora, isso não é connosco.
Partilho assim hoje aqui a felicidade de ter um irmão mais velho que virou uma
página importante. Chegarmos aos 65 anos é uma meta notável, pode ser o
princípio de uma nova etapa, a derradeira, mas não deixa de ser um marco que
todos desejamos atingir, com paz, felicidade e saúde. Se tivermos estas
possibilidades concretizáveis seremos as pessoas mais felizes e realizadas ao
cimo da terra. Se somos capazes de cumprir esse nosso papel, logo se verá se
somos.
Carlos Alberto
Domingo, 19 de Agosto de 2012 (Miratejo, 20/8 00:25h)
“Vinte anos é tanto tempo”
Tempo para tudo, tempo para nada. Acordar de manhã depois de
uma noite de pesadelos onde fantasmas me sobressaltaram o descanso. Acordei a
gritar para dentro, com medo desses ventos frios e estranhos que espreitavam
pelas frestas e percorriam deambulantes o quarto e depois se escondiam na noite
negra em recantos de fumos cinzentos. Até sinto arrepios agora só de pensar
nesses medos gélidos que me envolveram na negritude da noite. Mas não foi
apenas uma noite mal dormida; foi uma noite pouco dormida. Vivo hoje muito
preocupado com o nada que faço. Não há horas, não há tempo, não há dias nem
ninguém à espera. E vivo sem tempo onde o tempo não conta, apesar de nos
ultrapassar a todo o instante. Tento, no entanto, acordar, sair, sorrir,
sentir. Parece-me que assim algo me espera, embora saiba também que sou eu que
tenho algo para fazer. E, no entanto, nada acontece. Não me sinto surdo, nem
cego. Não me sinto à espera do nada. Sei, todavia, que tenho algo para cumprir,
mas pelo qual não vou atrás. Não me sinto doente, mas medo de que amanhã seja
tarde demais. Tenho raiva também, sim, recalcada. Perdi todo o amor que me
enchia por dentro. Já não luto pelo amor. Deixei de acreditar nele. Já não
quero sequer envolver-me, ir à procura. Sinto-me completamente desiludido e
acho que na vida o amor é uma estupidez, porque nos magoa. Tenho também pena,
muita pena mesmo, de não ter ido mais longe na minha formação. E hoje não me
sinto sequer, por via disso, com capacidade, coragem e ou ousadia de tentar o
que quer que seja para ir por aí. Infelizmente, sem amor e sem vontade de
lutar, vivo hoje muito mais virado para morrer, mesmo acreditando que posso ter
ainda vinte anos de vida à minha frente.
Carlos Alberto
Quarta-feira, 22 de Agosto de 2012 (Miratejo, 24:00h)
“Cheio de nada”
Mais um dia “em branco”. Um dia onde nada acontece e em que
somos meros protagonistas da inércia. Não, não estou a dizer que me limitei
a respirar ou que para sair da cama, de manhã, tive que pedir licença ao outro
pé. Não, nada disso. Na verdade o espaço estava aberto a todo o tipo de
encenação. Só tive mesmo de abrir os olhos, reparar que o tempo estava
delicioso, tragar um pouco do aroma da manhã e perscrutar o som das gaivotas que
me chegava do Sapal. Nesse momento decidi pôr em prática o sentido da
oportunidade e saltando da cama, vesti-me a rigor e saí como quem parte para
uma batalha. Não, não era apenas uma batalha, mas uma guerra, uma guerra de
areia e muito, muito mato que tinha pela frente. Mas sobrevivi: ao calor, à
distância, ao lixo que pejava a costa pela beira do rio. Lixo de todo o tipo:
natural e de plástico. Cansado, resolvi então sentar-me. Sentar-me diante de
mim e reescrever aquilo que é a minha história. A história de um passeio de
autocarro onde vou “só”, mas à procura do “lá”, “si” houver. Nada encontro. Não
esmoreço, nem me perco. Limito-me então a inventar, pesquisar, sentir como se
ainda estivesse lá, embora agora esteja sentado diante de uma página, e mais
outra, e já são muitas. É afinal apenas mais uma história, a história de uma
viagem, entre outras que certamente surgirão. E assim, o dia que era de nada,
encheu-se. Encheu-se também de amigos, de amor, com o amor de filhos e afins,
até este momento. Já só me resta agradecer o nada que foi muito e o sentir, o
poder ouvir, o poder estar aqui, agora que também não estou só, mas ainda na
melhor companhia do mundo, neste mundo.
Carlos Alberto
Segunda-feira, 3 de Setembro de 2012 (Miratejo, 20:40h)
“E tudo acaba”
Acabaram-se as férias no Montado. Acordámos, abrimos aquelas
enormes cortinas para os primeiros raios da manhã e uma luz brilhante
entrou-nos pelo quarto adentro. Uma paisagem maravilhosa de verdes e azul a
perder de vista percorreu-nos o olhar matinal. A manhã já acordara há bastante
tempo. As cores já não eram tão frescas, mas mesmo assim absorvemos com prazer
aquelas imagens e sensações que percorriam em êxtase o nosso corpo, até à alma.
Prontos e arranjados, à nossa espera um farto e apelativo pequeno-almoço comido
na tranquilidade que o tempo nos permitia. Deliciámo-nos pela última vez deglutindo
a gostosa combinação entre o sumo de laranja natural e os croissants com doce.
Depois é o passeio habitual entre os greens, tentando sempre fugir às bolas que
por ali esvoaçam, como pombas errantes, vindas, não sabemos, de onde. Entre
muita conversa que parecia que nunca mais acabava, soltámos algumas gargalhadas
de histórias antigas passadas e vividas noutros tempos difíceis, mas não
forçosamente infelizes. E a manhã esgotava-se. Passámos, mais uma vez, o olhar
pelo lago espelhado recortado pelos patos que em fila indiana por ali se
banhavam e sentimos a nostalgia de quem sabia que tudo aquilo ia ficar para
trás. Despedimo-nos do Montado e regressámos fazendo um desvio por Setúbal onde
pensávamos fazer uma ligeira paragem para uma bebida à beira rio. No entanto, a
paisagem da praia improvisada era magnífica e a água límpida atirava-nos, sem nos
molharmos, para dentro dela. Conversas e mais conversas que pareciam não ter
fim: inesgotável e infindável diálogo que não acabava nunca: histórias e mais
histórias percorridas num corrupio de sensações que nos percorrem ainda as
veias. Vidas que o passado nos infligiu e nos marcou, mas que não se apagaram
com o presente. Finalmente Alfarim. Aqui deixei a minha companheira desta
aventura e também o enredo de um filme que ambos jamais vamos esquecer.
Obrigado mana Fátima.
Carlos Alberto
Segunda-feira, 10 de Setembro de 2012 (Miratejo, 11/9 01:10h)
“Na penumbra de um tempo”
Eis-me no regresso às origens, inventando um pouco da
história possível, recriando aquilo que no inconsciente ainda é consciente,
acreditando que nada é por acaso e que este tempo é necessário vivê-lo. E assim
se nasce e acorda para mais um dia admitindo que somos poetas, fingidores e que
tudo nos é permitido dizer ou sentir, criar ou fingir, como um artista que
atira a sua tinta para a tela e, conforme o seu nome, assim o quadro valerá muito
ou nada. Erguemo-nos então da cama sobre o édredon, tapados apenas por um
cobertor com uma alma cheia de esperança – sendo que as manhãs ainda são
frescas – e partimos para um futuro certo e tão incerto quanto a nossa vontade
de sorrir. Pois é, não consigo pôr no rosto outra expressão que não seja esta
de espoliado, enganado, traído, traumatizado. Mas também não é de agora, fui
sempre assim, mesmo nas horas felizes. Eu bem tento escrever outra história,
como me pede uma amiga que, ao telefone, se despede com “meu querido”, como se
eu fosse um seu bem, alguém que ela amasse sem eu saber. Mas a minha história é
esta, enquanto vou sentindo a saudade de ser eu mesmo, com a capacidade de ser
homem, ter vontade de vencer e convencer, ter a energia e a força que têm os
vencedores e destemidos. Mas fico-me por aqui, em casa, com medo de sair, de
ser preso por estar a invadir propriedade privada. Sonho, sim, mas não
acredito. Perdi a fé, a coragem, a virtude de achar que era capaz.
Destruíram-me e sinto que já não valho nada, mesmo quando alguém ao fundo me
diz coisas que um homem gosta de ouvir de uma mulher. Mas já estou longe de
tudo, perdido, sem alma para renascer de novo.
Carlos Alberto
Terça-feira, 25 de Setembro de 2012 (Miratejo, 26/9 01:45h)
“Pela noite dentro”
A noite avança intrépida e silenciosa. Lá fora está a chover.
Chegou o inverno impiedoso e triste que nos arranca da mordomia que nos é dada
pelo bom tempo. Já não há espaço para sonhos de sol e céu azul ou até
cor-de-rosa quando a vida nos sorri. Agora só nos resta a noite fria e ventosa –
que leva os sonhos da gente que não dorme – com a chuva a salpicar-nos as vidraças
das janelas que temos agora de fechar. É um sentimento de tristeza, aquele que
sinto, como se carregasse o peso da infelicidade do mundo. Não quero pensar no
prazer que alguns podem estar a sentir e no que eu perdi com o passar deste
tempo recente. Porque apenas sinto dor e sofrimento que não se apagam, bem pelo
contrário, e que até me despertam e me atormentam quando me deito para
adormecer. É uma mágoa latente, que não se explica por palavras, um pesadelo
real e constante, embora aqui construído por mim. Sim, têm-se passado pela
minha cabeça pensamentos irreais. Posso querer estar no centro do mundo, mas
não estou. Estarei apenas na franja de um naperon algures colocado numa mesa de
um pobre, sob uma terrina de vida, frágil, também sem brilho e sem futuro. Vivo
como que numa barraca com telhado de zinco e paredes de madeira carcomida pelo
tempo. Sinto-me talvez comparável a uma pobre formiga, perdida nessa margem
descaída à espera de um qualquer abanão, encontrão ou até de ser esmagada antes
de descobrir o caminho de casa. Vivo ou sobrevivo, não sei bem, na esperança de
ser feliz. Mas nada acontece. Tenho que fazer algo por mim, mas desorientado
não sou capaz de fazer. Queria que o mundo olhasse para mim, mas sinto que nem
mesmo que me imolasse à porta da igreja, ou da Assembleia ou me atirasse da
janela do meu terceiro andar, isso seria relevante para quem quer que fosse.
Estou só, dramaticamente só e abandonado nesta intempérie por alguém que eu
amei mais do que a mim mesmo. E esse foi o meu maior erro. E quanto sofro, meu
Deus, por tudo isso.
Carlos Alberto
Segunda-feira, 8 de Outubro de 2012 (Miratejo, 23:10h)
“O meu hiato”
Quero sorrir na contemplação do teu rosto, beijar tua face no
desejo de te sentir, conhecer-te aos poucos no gesto da minha mão, calcorreando
tuas distâncias. És sombra, és pecado, és música, és passado. És tudo o que não
tenho na vida: meu suor que não transpiro, minha camisa rasgada de trabalho
árduo e que afinal apenas me conduz à melancolia do silêncio. És meu sopro que
expiro no ar que respiro, minha alma infinita que palpita num cansaço que não
tenho. Caminho então apressado na pressa de te ver; tropeço na magia de um
grito que não ouço, distraio-me depois na ilusão de que te tenho sem te ter e
adormeço sobre o sonho ou o desejo de que o sol volte a nascer, amanhã. E o
amanhã chega, com um outro nascer-do-sol lindo e radioso, com os pássaros a
chilrearem nos jardins, e galos, lá ao longe, anunciando, cada um, a gloriosa
manhã que surge. E eu continuo deitado numa cama de palha, ouvindo na solidão
de meus lençóis imaginários a canção que me faz de novo chorar. E são estas
mágoas que me rasgam por dentro, me cravam de cicatrizes que não fecham – onde
o sangue ainda brota – e que transformam, na raiva do que não sou, um passado
brilhante num futuro obscuro que me mata aos poucos. Mas acordo, mais uma vez.
Mais um dia para viver sem saber o que fazer, que caminho seguir. Dói deitar
assim, acordar assim, olhar em volta e não descortinarmos nada além das tábuas
verticais que nos fazem de parede e nos protegem do frio, do vento, da noite
agreste que nos corrói o espírito. Não, não estou a morrer ainda; é só o tempo
de adormecer e acreditar que amanhã será de novo um novo dia e feliz.
Carlos Alberto“Palavras muitas”
Chego a sonhar com as palavras que me voam na ilusão de que
chegam ao destino. E ouço o eco do estrondo que elas produzem no fim de um poço
onde se precipitaram em catadupa. Sinto o tempo que passa sobre mim e me vai
avisando que devo ter outra atitude: devo cobrir-me com um capuz, agasalhar-me sob
um capote, calçar umas botas cardadas porque se avizinham tempos difíceis. Será
tempestade? Será fogo? Será vento? Mas deve ser gente. Gente que se ri de mim,
da minha fraqueza que é mais do que pobreza. Não, não ando apenas a ler, mas estou
tão-só a sofrer com as palavras que tento dizer e que chocam comigo como devolvidas
pelo amigo. Falta-me tudo, falta-me amor, sinto apenas dor e daí estas linhas
que falam apenas do estertor que sinto em absinto. Mas ainda, tolo, acredito.
Tenho que acreditar que um dia ainda vou amar. Os meus sonhos não podem ser em
vão. Acredito que tenho de fazer algo pela arte, pela sorte, agarrar pela minha
mão, à parte, a vontade, o querer, a força de um poder, nem que seja
sobrenatural, de outro mundo, mesmo que não se transcreva num jornal e não me
deixe moribundo. Quero viver mais, sorrir e ser feliz, embora não saiba como,
nem onde, nem com quem, mesmo que sem vintém. A vida não se pode esgotar assim,
neste vazio e sofrimento em fim. Tenho que ganhar alento, voltar à vida,
crescer e florir de novo com um sorriso rasgado, amor desfolhado, cantando
canções de alegrias, fantasias e paixões. Sim, a vida é muito mais que meras
palavras cheias de boas intenções, palavras que serão somente palavrões, ditas
com carinho para não chorar.
Carlos Alberto
Quinta-feira, 11 de Outubro de 2012 (Miratejo, 23:00h)
“Resumo de palavras”
Gosto das palavras, mas sei pouco sobre elas. Conheço algumas
com as quais me dou muito bem, mas há outras que, como têm a mania, nem me
chego a elas. Tenho umas que me são mais próximas e que até as trato por tu;
por outro lado também há por aí outras que são umas esquisitas e que nem se dão
bem comigo. Mas eu também não as procuro. Sinto-me confortável com aquelas com
as quais me cruzo no dia-a-dia e sou feliz com elas, e adoro-as. Evidentemente
que os meus horizontes com as palavras também são curtos e eu não as conheço
todas nem domino as suas áreas de influência. Por isso há palavras que escolho,
porque gosto muito delas e que prefiro tê-las do meu lado. Palavras que uso
todos os dias, sem constrangimentos, que me preenchem a alma, me trespassam os
tecidos e se me alojam tranquilamente no coração. Gosto daquelas simples, que
se juntam a outras simples, que toda a gente entende; que falam – mesmo com uma
pronúncia qualquer – mas que nos pertencem, com as quais nos identificamos. E é
bom adormecermos com elas, mesmo ao nosso lado, em cima ou debaixo de nós,
mesmo que encadernadas num amontoado de livros. E admiro-as, conversando com
elas todos os dias, vendo-as juntinhas, todas certinhas e alinhadas, apelando
ao amor, à ternura, ao carinho. Sim, também há palavras más, feias, que nos
agridem, mas essas eu tento contorná-las; finjo que não as conheço, embora às
vezes me atropelem os pensamentos e me atormentem a cabeça. E há muitas por aí.
As melhores são mesmo as mais doces. Também gosto das que falam de justiça, de
paz, de amor. Obviamente que também há umas que são mais atrevidas e que nos
falam de sexo. Essas são, provavelmente, as melhores, as mais apelativas; mas
coro só de pensar nelas e evito-as porque me excitam e esqueço-me de quem sou e
transformo-me nelas e passo a ser as próprias palavras que engulo ou regurgito
no prazer delas.
Carlos Alberto
Terça-feira, 23 de Outubro de 2012 (Miratejo, 22:05h)
“Fuga para a frente”
Colocamos a mesa para comermos o prato. Lavamos as mãos,
penteamo-nos e vestimo-nos a rigor, de acordo com a solenidade do momento. Está
tudo a postos para recebermos os convidados. Não há velas acesas nem odores
honoríficos no ar, mas é como se houvessem. O vinho está na mesa a respirar pronto
a ser absorvido e o ambiente propício para gozarmos o prazer daquilo que seria
uma boa refeição. Só que à última da hora, perante a relação prato confeccionado/convidados,
perco a vontade de comer e finjo que não estou e desisto da refeição. Gostamos
de um bom prato, de uma boa febra na brasa e o que se nos depara é um “redon”
ou “redondon” que não nos apetece partilhar. E tudo acaba como (não) começou.
Desfazem-se os cenários, fecham-se as cortinas, apagam-se as luzes e deixamos
cair a parede que nos segura enquanto se instala a desilusão. O sonho, a
fantasia, a loucura termina ali naquele olhar que nem chega a ser trocado. Não
vale a pena, basta-me de velharias. Gosto muito da carne fresca da juventude e
de um espaço claro e aberto onde podemos sorrir num ambiente de pleno e
garantido prazer; e não ter na frente um cabelo grisalho, dos anos quarenta,
quando o vinho era tão caro, colheita topo de gama, das melhores castas que se
produzem e que certamente não seria bem degustado. E assim tudo acabou caindo no
silêncio absoluto. Estávamos numa manhã cedo, no princípio e no fim de um dia
em que tive de ir à procura de um outro produtor, este também antigo, mas que
já conhecia e que prometera uma festa particular por estes dias. E temos que
aproveitar enquanto há adrenalina a subir e a descer. A felicidade pode não
estar aí, mas é uma forma de me sentir vivo. Se é esta felicidade que procuro?
Não. Mas é a forma como me escapo, a minha fuga.
Carlos Alberto
Quinta-feira, 15 de Novembro de 2012 (Miratejo, 16/11 01:35h)
“Dia da véspera”
Cá vou eu noite adentro usurpando a madrugada do meu dia,
fugindo também às vésperas do tempo que já vivi. E cá estou eu iludindo as
palavras ou o sentimento que elas produzem, tentando inventar memórias de um
tempo que já não tenho. Dia de véspera, interessante princípio para uma
conversa aqui entre linhas, monólogo sem regras na esperança de que as palavras
façam sentido. E não entendo nada, não há racionalidade nos actos. Penso uma
coisa, faço outra. Apregoo o amor, a paz e depois digo que não há perdão para o
mal que umas pessoas fazem às outras. Grito, blasfemo, digo uns impropérios e
zumba, sou apanhado. Crescer custa e paga-se caro. Eu mostro uma cara de pau,
olhar hirto e sisudo, expressão íntima de crueldade atroz e, depois, choro
pelos cantos, encolhido e desesperado como uma criança cheia de medo,
embrulhado num invólucro que me esconde da vergonha do que sou. Sim, ainda
estou em dia de véspera, no tempo em que aguardo apenas pelo tempo, onde as
horas se consomem e se evaporam como álcool à intempérie. Sim, ainda vou
sonhando com a ilusão de que tenho a felicidade à minha espera, sentada; enquanto
eu, sentado, espero que a felicidade chegue. É este o sentimento, a esperança
que me move o espírito, a ilusão que alimenta o meu ego, mas que aos poucos vai
sentindo que a véspera se esgotou. E chega pois o grande dia, aquele em que
acordamos para a realidade e reparamos que estamos sozinhos. Cresce então uma
mágoa que nos rasga por dentro e gritamos no vazio de um tempo por preencher:
ai, dói-me aqui! E ninguém me escuta, na véspera.
Carlos Alberto
Quarta-feira, 21 de Novembro de 2012 (Miratejo, 22/11 01:00h)
“Palavras ao deitar”
Vou escrever ao amor, aos anjos, ao meu amigo, à saudade, à
canção, à paz, ao cansaço, à cama, ao abrigo, aos sem-abrigo, à luz, à amizade,
a todos aqueles que não me ouvem, ao vazio, à ternura, à solidão, à brancura,
aos leões, às águias, aos amigos do norte e do sul, ao sol, às nuvens, aos
poetas e artistas, aos músicos e trapezistas. Vou escrever ao mundo, a Deus, às
minhas mulheres e ateus. Vou escrever para todas as coisas, ou gente, porque
lhes quero dizer muitas loisas, sempre a correr. Vou dizer-lhes que os amo a
todos e até aos inimigos – de quem não me esqueci – e quero fazer as pazes com
os bandidos. Vou escrever também à lua, coitadinha, que merece uma palavra
lindinha. Vou escrever também ao Papa, ao Presidente, à mãe do Presidente e a
toda a sua gente. Vou escrever, claro, se eu lhes puder chegar, mas não
acredito que esta mensagem chegue sequer a ecoar... Vou escrever apenas, apenas
palavras escritas, sem gritar. Vou falar baixinho porque não é a ralhar que nós
fazemos amor. E por isso quero também que me ouçam, que me escrevam, que saibam
que existo, aqui neste cantinho do mundo, neste vazio imenso onde a solidão tem
uma voz tão profunda que inunda apenas o meu sono e me enche só a mim: de
lágrimas, de sorrisos que não tenho, palhaços que não vejo, e de crianças a
brincar que não me deixam ver. Vou escrever que gostava muito que me deixassem
ser feliz. Vou escrever ainda que gostava muito de ser alguém importante, nem
que fosse apenas para uma criança. Sim, sei que sou pai de três belas crianças
que eu amo e para quem vou escrever estas palavras: vocês são os melhores
filhos do mundo, Cláudia, Pedro e Celina; amo-vos muito; eu é que não serei o
melhor Pai que vocês poderiam sonhar ter.
Carlos Alberto
Sexta-feira, 23 de Novembro de 2012 (Miratejo, 22:05h)
“Pai e filha”
Estou no centro do mundo. Tenho tudo o que preciso à minha
volta e nas proporções necessárias e adequadas à minha homeostasia. Não há
chuva nem frio. Está quentinho o suficiente para me sentir confortável. Há luz
em quantidade quanto basta para conseguir ler e escrever o que sinto na maior
paz que me é possível ter. Há música, vozes de crianças que dizem já não ser,
palavras que me aquecem e protegem os sentimentos. Há amor. Pode ser até
distante, à distância de um metro, mas é o suficiente para aquecer minha alma e
nos sentirmos nos braços e no regaço de alguém a quem queremos muito. E
rimo-nos, brincamos, sentimos o pulsar do coração. Nossas mãos estão limpas e
acariciam aquela que nós fizemos num leito de amor, algures. Está tudo aqui.
Este é o melhor lugar do mundo para estar neste momento. Não me falta nada. As palavras
sobrepõem-se. A voz aquece. Não interessa se estamos sentados no chão e se há
apenas uma almofada a apoiar-nos. É o amor que aqui prevalece e se enaltece.
Pode ser apenas um quarto, um quarto pequeno onde até há algum desalinho, mas é
o espaço suficiente onde se constroem carinhos, ternuras, e se substituem os
choros ou as lágrimas por sonhos e desilusões assumidas. E há palavras que se
escrevem que têm um sentido tão profundo que até os erros nelas contidos têm um
sabor de autenticidade pura que as valoriza ainda mais. Uma carta ao Pai Natal
aos oito anos afigura-se-me como a melhor dádiva que Deus me deu por ter
concebido uma filha que pensa e escreve assim. E nesta simbiose de pai e filha,
atrevo-me então a escrever que, com certeza, o Amor terá sempre que vencer e prevalecer.
Carlos Alberto
Sábado, 24 de Novembro de 2012 (Miratejo, 25/11 00:55h)
“Um drama antes da comédia”
Os anos passam e, quer queiramos, quer não, vamos ser velhos.
E vamos ser chatos, vamos ser casmurros, vamos ter todos os problemas que os
velhos têm. E agora que penso nisso, apesar de ser um bom “princípio”, sinto um
certo constrangimento. É que nós achamos que temos sempre saúde, que somos
sempre jovens e que temos energia para dar e vender, ou que seremos sempre autónomos.
O que acontece, no entanto, é que os anos passam e, quando damos por isso,
estamos surdos, mal vemos, somos insuportáveis e até cheiramos a velho. Pois é,
esta é a crua realidade do que somos e para quem se atreve a desafiar os anos. É
este o nosso “inexorável” fim. E foi com estes pensamentos que me confrontei dentro
desta noite fria e bastante chuvosa. Atravessámos a estrada e, com o vento, as
folhas das árvores entornavam engrossando os pingos de chuva que caíam e nos
regelavam a calvície. Junto aos modernos e luxuosos edifícios da larga avenida,
lojas de marcas internacionais, de protuberantes fachadas, reluziam para a
noite a luz deslumbrante das suas montras. Nas sombras, contudo, vultos
informes, de alguns sem abrigo, disfarçavam-se, aconchegando-se debaixo de uns reles
cobertores e sobre umas placas de cartão, estendidas sobre o gélido chão de
mármore. Uma mulher arrumava no seu canto as almofadas, as garrafas de água e
uns pertences muito dobradinhos. Congelei. A minha peça de Teatro era mais à
frente e tratava-se de uma comédia, mas estava ali já diante do primeiro
contacto com o drama. O drama da vida real. Gente nova, gente velha, descalços,
a garrafa de vinho ao lado, os pés enegrecidos, os gorros enfiados nas cabeças.
E nós ainda nos queixamos do exíguo e caótico espaço que temos neste quarto,
que a cama range e faz barulho, que é curta e os pés ficam de fora. Quase
velhos, esquecidos, chatos e para rir, assim foi a comédia, depois de chorar
pela realidade que nos colhe e apanha desprevenidos. Avenida da Liberdade, barriga
cheia de jantar no bucho, uma comédia e um drama em dois actos. O drama foi
verdadeiro. A noite acabou aqui.
Carlos Alberto
PS: Voltei a fazer ligeiras alterações nos originais, muito
pontuais nalguns textos, para lhes fazer alguma correcção gramatical ou dar
mais ênfase ao assunto em questão.
Cada texto reflete um distinto estado de espírito.Que prevaleça a esperança, sempre e em qualquer espaço de tempo.
ResponderExcluirAbraço
Pois, é verdade: a esperança é a última coisa a morrer. E eu acredito que tudo na vida tem uma razão de ser. Nada acontece por acaso...
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