SER AVÔ

No dia seguinte aquele em fui de novo avô pela terceira vez, aqui fica o meu testemunho, face à condição de o ser.
Deus vos abençoe a todos.
 
"Olhei para ele e vi um homem entrado na idade: diria que pelos sessenta anos. Figura altiva, espigada e magra, com rosto característico de aspecto caucasiano, tinha o cabelo grisalho e o seu olhar confiante, mesmo à distância, transparecia alguma felicidade. Na sua boca havia sorrisos abertos, quando olhava e se dirigia às duas crianças que brincavam à sua volta e com ele. Trajava roupa descomprometida, de caracter jovial e sem preconceitos e interagia com alguma facilidade motora com aqueles que me pareceu serem seus netos.

Interiorizei aquela imagem e reflecti sobre mim e o meu próprio estatuto de avô. Recuei à minha infância, como neto, e só consegui ver minha avó, muito velhinha, pequenina, vestida de preto da cabeça aos pés, com um lenço também preto a cobrir-lhe a cabeça e escondendo quase todo o rosto. Era uma avó pouco afável, que vivia com uma filha, minha tia, e que eu raras vezes visitava, não porque a distância fosse grande, mas porque não havia qualquer chamamento ou carinho especial entre nós. Talvez características da nossa família, muito pouco socializante. Mas tenho também a sensação de que ela não gostaria muito de mim, provavelmente por eu ser um miúdo muito traquinas e irrequieto, E é esta imagem, daquele tempo, que guardo agora da minha única avó que conheci: uma imagem deveras taciturna, distante e austera e que me marca ainda hoje.

E, na verdade, soube sempre tão pouco do que foram e como foram os meus outros avós: seus traços, suas paixões, suas tendências. Até os seus nomes se me escaparam com o tempo e tive agora de perguntar, recorrendo à minha irmã, quais eram: “Benvinda e João, os da parte da mãe e Adelina e João, da parte do nosso pai” – disse-me ela, rindo-se da situação caricata em que eu me colocava. De facto, se por um lado é triste eu passar por esta vergonha de não saber sequer o nome dos meus avós, por outro, não tenho que lamentar, porque foi isso mesmo o que aconteceu e poderá ser resultado de um qualquer recalcamento que inconscientemente fiz. E se este texto serve para constatar este facto, também serve para contribuir, já agora, para imortalizar aqui, de uma vez por todas, os nomes de todos os meus quatro avós.

 E uma das razões que talvez possa justificar o que pode estar subjacente a este meu aparente, mas manifesto desinteresse que sempre senti e sinto pelos meus avós, possa estar também no facto de os meus pais, enquanto filhos, não se terem referido muito a eles. E durante a nossa convivência, eles nunca os evidenciaram muito ou feito grandes referências a eles. Um dos motivos também para esta omissão terá sido, provavelmente, porque naquela época havia muito pouco tempo para estarmos todos juntos à conversa; o trabalho e as canseiras da vida não lhes davam tréguas e isso certamente terá contribuído para esta situação, da falta de um diálogo mais profundo. Um escasso diálogo, sim, não só sobre este tema, mas também sobre outros assuntos. Constato ainda que nem sempre almoçávamos e jantávamos à mesma hora, mas a horas diferentes, cada um na sua vida, com sua própria labuta e isso explicará muito daquilo que foi a nossa vida paralela.

Soube, no entanto, que os meus avós eram pessoas humildes, de muito trabalho, pessoas honestas, sendo que os meus avôs viviam do sustento do seu salário e as minhas avós eram domésticas, em casa cuidando dos imensos filhos que tiveram. E mais não sei hoje, ao certo: o que faziam, que pessoas eram, o que representavam e, as poucas lembranças que tinha acabaram por se perder diluindo-se com este passar do tempo, dos anos. Provavelmente, e tenho isso como certeza, é que eles não foram pessoas importantes da sociedade nem se notabilizaram em nada e, por isso, não haveria muito para dizer sobre eles. Sei, todavia, por exemplo, que a minha avó materna (a única que conheci) teve dez filhos e a avó paterna, apenas três. Se me situar no tempo (início do século XX), naquela época as famílias eram todas muito numerosas: vivia-se para fazer filhos, para os pôr a trabalhar e ajudar no sustento da casa. Nesta linha, também estes meus tios seguiram as pisadas dos pais, de ter grandes proles e também eles tiveram seis e sete filhos cada um, tendo eu hoje, por isso uma imensa lista de primos direitos.

Sobre o que terão sido os meus avós, diria ainda que nem sei se eram pessoas de vestir bem, se precisavam de bengala ou sequer se usavam óculos na ponta do nariz ou um monóculo...Se eram pessoas grandes ou pequenas, gordas ou magras, se cultas ou analfabetas, se poetas ou artistas, ricas ou pobres, pessoas felizes ou infelizes. Não sei nem nunca soube nada sobre eles, músico, um deles? Falou-se nisso algures porque lhe chamavam “o canta a chula”... Mas nada posso acrescentar.

E foi assim que cresci, neste inconsciente espírito familiar, mesmo que pouco paternal, embora fraterno (do meu ponto de vista), e de que agora me sobram estas lembranças. Mas do que tenho a certeza é que, na família, não se tratava de haver qualquer espécie de hostilidade entre nós, não. Apenas não se privilegiava a necessidade de nos preocuparmos em demasia nas relações de uns com os outros. A preocupação centrava-se apenas na nossa falta de tempo e interesse para o diálogo, de resto, afinal, coisas normais em famílias pobres e de trabalho, nomeadamente, no contexto daquela época. Diria ainda que, por outro lado, o meu pai trabalhava doze horas por dia e a minha mãe vinte e quatro. Pouco tempo para a educação dos filhos. Mas coitados, dele e dela, que eram, tão só, uns escravos do trabalho, sempre agarrados aos afazeres do dia-a-dia. Férias e passeios? nem pensar; muito raros ao longo dos anos que passámos juntos. E são estes pequenos detalhes que vi, vivi e senti, na relação familiar, nomeadamente, entre pais e filhos e avós versus netos, que espelham, traduzem e explicam um pouco (digo eu), daquilo que manifesto e sou hoje neste meu papel, não assumido, de avô.

Aqui chegado, penso que subjacente a tudo isto, ou seja, ao meu aparente “desligamento” dos meus netos, há um historial familiar que reflecte o muito pouco que sinto de afectividade por eles. Certamente houve também razões exógenas que explicam estes (des)afectos entre todos nós. Uma delas, talvez, porque também os meus pais não foram uns avós carinhosos, amigos dos netos, daqueles que lhes pegam ao colo e lhes dão rebuçados ou chupa-chupas, não. Lembro-me da minha mãe, mais tarde, quando nos recebia em sua casa, dizer para a minha filha pequena, sua neta: “Não mexas nas bonecas da avó”, assustando-a e acrescentava que as suas bonecas não eram para brincar, mas que eram apenas para decorar os móveis. Será que a minha filha amanhã, como avó, será também assim e terá no subconsciente este comportamento repressivo?

Ali, com a minha filha pequenita, eu como protagonista, sendo pai, observei este tipo de relacionamento e apesar de achar que meus pais não eram pessoas agressivas, verifiquei, no entanto, que também eles não foram afinal pessoas muito afectivas, nomeadamente, naquela situação para com a neta. E guardei esta memória, a juntar a outras negativas, que talvez expliquem muita coisa do que represento e sou hoje.

Voltei aquele homem - que nem consigo chamar de velho – e reparei na forma como lidava com as duas crianças: ele corria, jogava à bola, escondia-se atrás de uma árvore, gatinhava pelo chão, rolava na relva e repetia tudo o que eles faziam, sempre a sorrir e a dizer-lhes coisas do género, que entendi como: “foge, que vou apanhar-te”. Então, eles saltavam do banco e ele desatava a correr atrás delas numa desenfreada gritaria de felicidade conjunta.

            Por fim, cansados da brincadeira, vieram todos sentar-se ao meu lado, no banco comprido do jardim do parque, onde estávamos e, sem querer, assisti a uma curiosa conversa entre eles.

– Avô, o avô Manel não brinca assim connosco, como tu – disse o mais velho dos dois irmãos. Ele devia ter uns sete, oito anos e o outro, o mais pequeno, uns quatro, que logo ali se riu e me pareceu que concordou com o que o irmão acabara de dizer.

– O avô Manel está sempre a dar-nos brinquedos, dinheiro, compra-nos roupa, leva-nos para sua casa para tomar conta de nós, vamos ao jardim muitas vezes, mas está sempre a ralhar connosco e não podemos fazer nada. Não brinca assim, connosco, como tu, não é tão divertido...

– Eu gosto muito do avô Manel, mas tu, avô, és mais fixe – acrescentou.

Eu a ouvir isto soltei uma gargalhada interior. De facto, não se compra a felicidade de uma criança, mas apenas se oferece o amor, nomeadamente, com a distribuição dos afectos (tão importantes), como aqueles, a partir de uma simples brincadeira que, naquele instante, era o mais importante de tudo para aquelas duas crianças e, provavelmente, para aquele homem, no seu derradeiro papel de avô.

Nessa altura lembrei-me de ter visto, certo dia, uma cena numa esplanada, em que havia um homem sentado a ler um jornal e estava acompanhado de duas crianças pequenas de uns cinco, seis anos, que brincavam ruidosamente ao seu redor. Pelas diferenças de idades, seriam talvez também suas netas. Eram duas miúdas que brincavam, como brincam duas crianças quando se juntam. Incomodado com a algazarra delas, deu um grito em sua direcção, deu-lhes um raspanete dizendo que se estavam a portar mal e ordenou-lhes que se sentassem, quietas, a seu lado. Claro, um disparate, pensei eu.

Ou seja, quis que duas crianças se comportassem como dois adultos, tranquilamente sentadas, numa esplanada, agindo e/ou pensando como pessoas adultas. Não valorizou o facto de serem apenas duas crianças. Normalmente até associo este tipo de atitudes aos pais, já que os avós, nestas circunstâncias, são sempre mais condescendentes. Mas o que eu senti e me incomodou foi que aquele homem, naquele reparo, cerceava, àquelas crianças, a sua liberdade, a felicidade de serem crianças, afinal num espaço que até era bastante amplo, obrigando-as, ali, a comportarem-se de forma, digo eu, inadequada, isto é, apenas quietas, olhando sossegadas, a mesa à sua frente, como se isso fosse um estado normal de duas crianças, numa esplanada, num local perfeitamente enquadrado, num jardim e nem sequer com muita gente à volta, senão eu, sentado numa outra mesa, distante.

Voltei a mim e àquele inusitado diálogo que, de uma forma indirecta, afinal me atingia de uma forma contundente e (no fundo do meu íntimo) de forma dolorosa. Afinal eu também era avô de dois netos daquelas idades e... que tinha feito ou fazia eu por eles?

Na verdade, pouco, muito pouco, ou nada. Pensei que de facto, não tinha sido, nem era, um avô modelo para ninguém. Apesar da minha total disponibilidade e reformado, estivera sempre muito distante dos meus dois netos. Praticamente tendo-os dispensado e, apesar de nem morarmos longe, nunca os procurava nem sentia a falta deles. Claro que sempre gostei deles, obviamente que sim, mas não preenchiam, até hoje, nada de relevante dentro de mim. Provavelmente eles tem sentido a minha falta, ou não, mas isso nunca me afectou, pelo menos até aquele momento em que, no parque, ouvi aquele inesperado diálogo daquela criança com o seu avô. E, obviamente tirei as minhas ilacções.

E a conclusão a que cheguei é que não me consigo aceitar e encaixar-me no papel de avô. Não sei se é o medo de envelhecer, se o medo da conotação que atribuo ao paralelismo: avô, logo, idoso e, se idoso, logo, velho, se, por outro lado, à imagem da minha infância tendo tido como referência uma “velha” como avó. Uma avó que não brincava, que se vestia de preto, que não transmitia afectos, que era, de facto velha. Será?

Curiosamente, eu até tenho amigos que foram avós aos quarenta e poucos anos e não se importaram nada com isso, bem pelo contrário. E adoram até estar nesse papel, sempre preocupados com os netos, a mostrarem fotografias deles aos amigos e a dizer “Não são lindos os meus netos?” Eu, por outro lado, infelizmente, não sinto isto e evito estar nesse papel, como que não assumindo a minha velhice e o caminho inexorável da idade. É que a minha linha de pensamento vai para o facto de que, sendo avô, estou mais perto de ser velho e ser velho eu não quero e, por isso, vou querendo rejeitar esse inefável estatuto. Porque se ser avô é sinónimo de estar na fase característica a que normalmente chamamos de “terceira idade” – como isso também não quero e me desagrada – é como se essa ideia fosse suficiente para me empurrar para o inevitável fim que me espera – e que nos espera a todos – e da qual eu liminarmente me tento afastar (sem êxito).

Interessante ainda – e só agora penso nisso – é que eu antes de ser avô já tinha sido tio-avô, e por duas vezes (hoje, três), mas ainda assim sempre consegui passar ao lado desse paralelo estatuto. Era algo que não me atingia de forma directa e era como se não fosse nada comigo. Disfarcei sempre, não relevei, mas claro, não consegui, nem consigo, deixar de efectivamente de ser também tio-avô, embora com consequências muito menos punitivas para o meu ego. Azar o meu... ou não.

Mas a minha história não acaba aqui, neste conflito de interesses, quer como tio-avô, quer como avô e a relação com os meus dois netos rapazes que teimei em não assumir, até hoje. É que para me sentir, definitivamente pior e mais penalizado, (como se ser avô fosse mau...), é que não posso fugir ao meu destino de envelhecer, de ser velho e ser em simultâneo avô, quer queira, quer não: é que quando eu chegar aos sessenta e cinco anos (daqui a meses) vou, de novo, ser avô, pela terceira vez e será de uma menina. E, decerto, terei que mudar de atitude e, definitivamente, ser como aquele avô que brinca, participa, que está presente, que assume o facto de que ser avô e que ser avô é, antes de mais, um privilégio e uma bênção e não algo de mau que se dispensa e não se deseja. Afinal, ser avô pode significar longevidade, experiência de vida e, estas, com saúde, harmonia e com a família em redor, podem ser as melhores coisas e as mais importantes que temos no fim, ou do restam dos nossos dias.


Além do mais, há ainda uma aprendizagem relevante e recíproca que se pode verificar entre netos e avós. E se por um lado são eles que até nos ensinam a compreender as novas tecnologias, as tecnologias que nós criámos, por outro, são eles que as dominam e no-la transmitem, como se tudo fosse intuitivo e nada tivesse segredos para eles. Em fim, nós seremos os anciãos da vida deles, os velhinhos, mas a verdade é que com eles também aprendemos, e muito. Mas não só neste aspecto tecnológico e da evolução que lhes estão associados, mas ainda também a outros domínios, como em lições de vida, valores ou atitudes que experienciamos. Situações que até nos podem marcar de forma inesquecível e que nos servem de exemplo. Eis um que se passou comigo:

Eu estava no restaurante a almoçar com a família: minha filha, meu genro e os meus dois netos. O mais velho de seis anos sentado à minha frente. Comemos uma caldeirada de peixe, mas a caldeirada estava muito mal confeccionada. Tinha pouco peixe, o peixe pouco fresco e sem sabor, tudo de qualidade muito duvidosa. Insatisfeito, mal comi o que pus no prato. Aborrecido, decidi chamar o empregado e reclamei da qualidade da refeição. Este decidiu chamar o patrão e perante ele não me fiquei pelas meias palavras. Fui também bastante agressivo dizendo-lhe, em tom altivo e inapropriado, que “a caldeirada não estava má, estava péssima”, reforçando a ideia da minha insatisfação. O homem pediu desculpa, aceitou o meu altitonante desabafo justificando-se com o novo cozinheiro que tinha pouca experiência e retirou-se aborrecido com a situação criada, nada boa para o estabelecimento cuja especialidade era precisamente o peixe.

O meu neto esperou que o homem se afastasse o suficiente, olhou para mim e sem que algo o indiciasse, mostrou-me a sua indignação e de forma advertida disse-me em tom repreensivo:

- Avô, escusavas de ser tão agressivo para com o senhor. Podias ter dito apenas que a comida estava má. Não era preciso dizeres que a comida estava “péssima”. E carregou o seu tom da voz na expressão “péssima”, tal como eu fizera, imitando-me no mesmo tom penalizador e agressivo. Olhei para ele, boquiaberto, sem palavras e envergonhado pela minha atitude, mesmo com a razão pelo meu lado. Estamos sempre a aprender.

Bom, já percebi que lá tenho que recuperar o tempo perdido, sair daquele banco, ir depressa ter como os meus dois netos, dizer-lhes que está um tempo magnífico lá fora, que há um parque de diversões bem perto de onde vivemos e temos uma corrida contra o tempo para fazer: “Fujam que vou apanhá-los”.

Em suma, vamos lá então sorrir, brincar, e ser avô de uma vez por todas, até que o coração nos doa, para que, quando chegarmos ao fim da nossa jornada, possamos dizer “obrigado meus netos”, e poder ainda dizer-lhes ainda que, “por vocês, tudo valeu a pena e que ser avô foi a melhor coisa que me aconteceu. Obrigado”.

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