CARTA A FERNANDO PESSOA
Seixal, 25 de Janeiro de 2018
Meu caro amigo,
Bom dia. Espero que esta carta o vá encontrar sepulcralmente
tranquilo na sua ancestral paz (se é que é possível dizê-lo, nesta simbiose
energética), que eu, ainda por cá, mesmo distante no tempo e no espaço, vou
tentando gerir minhas perturbações, nomeadamente, uma delas, o efeito que o eco
das suas palavras escritas vai hoje surtindo pelo meu subconsciente.
Provavelmente estranhará o teor dela e até a minha motivação,
mas digo-lhe, neste momento, ela apenas pretende ser um elo de ligação, como um
traço, entre aquilo que o meu amigo foi como Pessoa e aquilo que eu sou hoje
como Fernando. Ironia, pensará o meu amigo, e que estou apenas a brincar com as
palavras. Mas é isso mesmo: e como adoro brincar com as palavras, gostava de
perceber melhor como o meu amigo as dominou com tanta mestria e fez delas uma
arte que ultrapassou todo e qualquer simples sentimento e atingiu, com elas, já
várias gerações, como me atingiu a mim.
De facto, nem nos conhecemos pessoalmente, ou conhecemo-nos?
Revejo-o tantas vezes nas minhas insónias e transporto-o sistematicamente para
as minhas constantes dissertações que já não sei se alguma vez nos cruzámos, na
verdadeira acepção da palavra (escrita).
E é exactamente isso que agora me importava descobrir. Sei
que estarei a maçá-lo com esta minha inquietude, mas na verdade, gostava de
entender, partilhando consigo, qual o traço que nos une e onde se tocam nossos
distintos universos. É certo que também já não sei sequer se existo, ou se já
coexisti consigo algures ou até por que lhe escrevo e porque lhe escrevo. Efectivamente,
não sei nada da vida ou da morte, ou da energia que nos aproxima; apenas
subsisto, o que já não é mau.
Posto isto, meu caro amigo, ao ler as suas palavras, com as
quais me identifico aqui e ali, acabo por me sentir contagiado com a sua
essência, quer como ser humano, quer como ser de outro planeta (provavelmente
naquele onde estará neste momento), porque, de alguma forma, me influencia e
afecta, de forma literariamente psicológica, a minha própria identidade.
A sua escrita leva-me para além das nuvens, do sol, da lua
(se é que existem, nunca lhes toquei) e isso não sei se é bom se mau. Sou
constantemente confrontado, ao lê-lo, por sentimentos que me abalam e que
deitam por terra todos os conceitos que fiz ao longo da minha vida. Depois, não
satisfeito, o meu amigo bombardeia-nos com personagens que classifica de
heterónimos e que nos fazem esbarrar nas percepções físicas ou metafísicas que
temos e que congelámos ao longo dos anos e que, afinal não servem para nada. E
agora?
Agora, o que me faz sentir, ao escrever-lhe estas linhas, é
que tudo parece não se encaixar na vida que (não percorremos) e aquilo que
sinto, neste inusitado fervor que começa no meu pâncreas e no fígado e se
desenvolve numa expansão desenfreada de bílis rumo ao coração (sem passar pelo
esófago até ao duodeno) é que nada é aquilo que é, aquilo que parece, aquilo
que queremos que seja, desafiando e pondo assim em causa, neste sistema
biológico, tudo o que existe e temos como perfeito. É isso que o meu amigo
acrescenta em mim e por isso o admiro. E se “tudo vale a pena se a alma não for
pequena”, este instante consigo levou-me até si e, por mim, valeu a pena.
Sem mais por agora, receba um universal abraço de estima e
consideração e até sempre.
Fernando em Pessoa
(heterónimo de Carlos Pereira)
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