ATÉ QUE A MORTE OS UNA
O Inverno já se fora, assim como o caminho e, o que agora percorre, está
bem longe das montanhas e vales que o pariram, criaram na juventude e o
consumiram. A calosidade das feridas mantêm-no alerta para as suas origens, e
Manuel caminha agora, distraidamente pela rua, mas calçado, de ténis
confortáveis, roupa desportiva, e disposto a viver e a saborear novos odores,
bem diferentes daqueles que, no passado, inalou.
Não tem aqui o cheiro a rosmaninho ou alfazema, nem dos pinheiros, ou dos
eucaliptos; apenas um vazio salpicado de pontos verdes que parecem destoar da
paisagem urbana que agora desfruta. As pequenas árvores salpicadas por traços
no seu novo caminho até parecem que se escondem nas esquinas do amontoado de
casas, e mais casas, que se perfilam lado a lado, a seu lado, sem nenhum
critério estético definido.
A Primavera, em toda a sua plenitude, sobrevoa-lhe o horizonte, embora
esteja no outono da sua História e que lhe pesa na essência do que é hoje. “Os anos, meus Deus, os anos” – grita
ele com a sua voz interior, rasgada pelas memórias que se alojam nos
pensamentos e lhe vão destruindo os passos que ainda quer ser capaz de dar.
Olhando para o céu, como que implorando a todas as Estrelas da sua vida,
conseguiu sentir no ar o clima diferente, urbano puro e duro, ou melhor, macio,
porque de repente, uma estranha energia transparente e volátil cravou-se na
espinha, como se o enrolasse para uma dança e o abraçasse num calafrio.
Uma amena lufada de ar fresco vinda do rio – que se fez levemente sentir –
soprou-lhe aos ouvidos, como que segredos. Acariciou-lhe, ao mesmo tempo, o
rosto ainda ressequido e, de uma forma doce, meiga e reconfortante experienciou
um beijo vindo do infinito. Conseguiu por momentos sair dali e projectou-se,
involuntariamente, entre os montes e vales da sua vida passada como se a Sua
Estrela estivesse também ali a olhar para ele: e estava. 

Ele caminha agora, sentindo também o pulsar da vida da pequena cidade que
o acolheu. Há crianças que brincam alegremente à sua volta, de cá para lá e de
lá para cá, ora gritando, ora rindo umas das outras, correndo numa e noutra
direcção. O rio calmo, ali ao lado, muito sereno e sem qualquer movimento,
parece um espelho cintilante reflectindo a acalmia vinda do céu sem nuvens,
enquanto um ciclista passa por ele pedalando, compassadamente, sentado ao selim,
usufruindo, com a velocidade, a possibilidade de chegar mais depressa e
primeiro.
Sem pressa, Manuel caminha por entre as flores, o jardim, as pessoas, os
automóveis que passam ao lado e as casas de pequeno porte que ladeiam o seu
percurso. As dores nas costas, pela idade que tem, são agora maiores. Observa,
sente, inspira e expira com a força intensa que lhe é permitida pela lei da
natureza humana, como se fosse o seu último suspiro. Num momento, quase
instantaneamente e de forma inconsciente, sorri para dentro de si mesmo,
quando, olhando para uma janela, acima dos seus olhos, repara num pequeno
estendal com meia dúzia de pares de peúgas presas na corda. Sacudidas pela
aragem, como que bandeiras hasteadas ao vento, estas acenam-lhe como que um adeus – pelo menos é assim que ele
interpreta – enquanto mais à frente ainda vê um homem que, olhando para o
relógio, acelera o passo apercebendo-se de que estará atrasado para algo. “O tempo, meu Deus, sempre o tempo”, pensa
ele com os seus imaginários botões. O tempo que faz falta às pessoas, o tempo
que mete medo, o tempo que se nos esgota e, ali, Manuel rumo a esse inexaurível
tempo, sem margem para se esquivar, declara para si mesmo:
“Maldito tempo, sem tempo para nada.
Se eu pudesse comprar o tempo, eu comprava.
E cortava o mal pela raiz.
Ia-me
já embora, pensava,
devolvia o troco que me restava
e, na
alma, seria mais feliz”.
Parou por momentos como se absorvesse mais um pouco do ar que respirava e
quisesse, de alguma forma, interiorizar, reter ou gravar na sua memória aquela
inusitada imagem fora de contexto das peúgas estendidas, que vira lá atrás. Sorriu
de novo, mas na sua cabeça misturavam-se e dançavam eufóricas as sensações e as
imagens e, por momentos, sentiu-se redopiar com elas. “Ganharei tempo se parar? Ou perco tempo?”.
Recuperou para os seus pensamentos
e, de forma instintiva, Manuel dirigiu-se com as mãos para os botões que não
tinha na sua vestimenta. Baixou a cabeça e abriu o fecho éclair do casaco do
fato de treino. Estava acalorado. Coçou o pescoço da comichão que sentira pelo
aperto da gola, afagou os grisalhos cabelos com os dedos como se fosse um pente
e sentiu-se mais liberto para respirar melhor, acreditando que tem o tempo todo do mundo, bem diferente
do que sente.
“Tenho todo o tempo do mundo!” –
Insistiu ralhando consigo mesmo, como que zangado com o universo, colocando o
dedo na sua própria ferida. De facto, ninguém estará à sua espera quando
decidir voltar para casa. Magoa-lhe isso. Mas agora neste sufrágio, enquanto o
tempo o engana, também só quer apenas usufruir dos sons e dos cheiros da
maresia dos bivalves que lhe chegam do rio. É isso que lhe importa. Quer agora somente
sentir o pulsar da vida que passa por aquele seu momento de profunda e, simultaneamente,
descontraída emoção. Sentir a liberdade de poder olhar o céu muito diferente de
outros céus, mas poder absorver, ainda que noutra linguagem, a mesma quietude desses
tempos felizes de outrora.
Um avião muito pequenino deixa um rasto branco no céu. Por instantes,
assalta-lhe a ideia de que gostaria muito de ir nele rumo à Sua Estrela. A
idade pesa-lhe e já não são só as costas doridas e curvadas, pela força das
agruras, que lhe doem. São também as pernas que já fraquejam, as mãos que tremem
um pouco e a sua cabeça que tem a consistência de um ovo, mas assemelha-se por
dentro a um balão, cheio de ar, sim, mas vazio de interesses, pela solidão que
a vida hoje lhe proporciona.
Manuel regressa a si no mesmo instante, como que atingido por um raio,
quando se vê estatelado no chão depois de, inadvertidamente, ter chocado com um
poste de luz... Como que atirado para um lugar distante, completamente
desorientado, perdeu os sentidos e tenta levantar-se. Mas está fraco,
combalido, meio perdido e até acredita que vai já naquele pequenino avião que,
supostamente, vira momentos antes. “Teria
sido momentos antes?” – Tenta reflectir. Mas naqueles instantes só consegue
ouvir os motores potentes do avião que o transporta, a grande velocidade,
através dos céus. Pelo menos vê uma luz para a qual se dirige e da qual se sente
cada vez mais perto. Mesmo assim, derreado e num esgar de sofrimento numa boca
desprovida da maioria dos dentes, quer tomar conta da ocorrência, dominar a
situação, perceber onde está, fazer um relatório, responsabilizar os autores e levantar-se
daquele lugar. Mas sente-se amarrado, preso, lançado no tempo, sem tempo, com
os pensamentos em turbilhão, já naquele pequeno avião que lhe toldou os
sentidos.
– Chamem uma ambulância! – Ouve
alguém a gritar. – O senhor está ferido.
– Acrescenta ainda a mesma voz.
– Já chamaram. – Responde
outro.
– Bateu contra o poste de luz. – Explicou uma voz preocupada de mulher.
– Devia estar bêbado, com certeza, para
o não ter visto. – Apareceu logo alguém a opinar.
– Coitado do velhote, não viu o
poste. – Ouviu-se ainda a alguém
constrangido com o sucedido.
Manuel começa a delirar, como se fosse o protagonista: “Minha querida Estrela, como tenho saudades
tuas, meu amor” – ouve-se a balbuciar. O seu corpo aqueceu e o ritmo cardíaco
baixou drasticamente. Ele está distante.
Olhos fechados penetra nos caminhos até onde suas lembranças chegam, por
entre os seus montes e vales, lagos e lagoas, árvores e verde, corre e projecta-se
depois na loucura daqueles tempos e, sem obstáculos ou com eles, consegue
chegar até aonde, com a Sua amada Estrela, fora eternamente feliz.
Veio-lhe então à memória, dos recônditos da sua alma, aqueles momentos que
com ela partilhara e, como uma legenda, também as palavras que enfatizava,
repetidas vezes, e que lhe pronunciava apaixonadamente: “se houvesse uma eleição para os dez homens mais felizes do mundo eu
seria um dos eleitos”.
A ambulância chegou e Manuel parecia consciente de tudo, apesar de ter
preferido manter-se inerte e impávido, face às circunstâncias. Sempre era uma
forma de se alhear e afastar desta vida por momentos. Não sabia ao certo quanto
tempo estivera ali a dialogar com seus pensamentos, mas tudo parecia passar
muito depressa. “Vá, preocupem-se comigo,
dêem-me toda a atenção do mundo” – delirava para si mesmo. Colocaram-no
numa maca, meteram-no na ambulância e transportaram-no para o hospital da
cidade.
Manuel ali ia, estendido, sacudido agora pela velocidade do que o
transportava, sem ser capaz de sentir qualquer dor. Deixara-se envolver, inexplicavelmente,
por aquelas estranhas sensações e pensamentos, incompreensíveis dadas as
circunstâncias; mas era o que sentia. Não percepcionava o seu corpo, só mesmo a
alma, e à sua cabeça apenas chegavam informações de total tranquilidade, paz e
harmonia. Seus pensamentos continuavam a divagar e a envolvê-lo, como se a Sua
Estrela fosse ali a reconfortá-lo e a puxá-lo para si. “Estaria a morrer? Iria a caminho do túnel de luz? – Pensava ele.
Percebia-se bem o que Manuel sentia face ao que vivera com sua mulher e a
paixão que usufruíra com ela em todos aqueles anos. Não raras vezes, entre
lágrimas de amor e ternura, com o fervor de quem atinge o êxtase, entre sublimes
e loucas vagas de paixão, Manuel e Estrela transpareciam a imagem de dois rios tempestuosos
que se unem num só e que veloz e rapidamente transborda nas suas margens. Um
rio que na sua passagem alaga tudo com a força transcendental e imparável de um
tsunami; sem contemplações, sejam as vidas de quem as suporta, sejam as orações
de quem implora misericórdia. Ele, o rio, indiferente, conquista e abalroa numa
dolorosa fatalidade tudo o que lhe aparece à frente. E era nessa inesquecível e
ambígua loucura de felicidade e destruição que eles se entregavam perdidamente.
Alheios aos gritos, às margens, à paisagem ou ao tempo, entre horas das quais até
se esqueciam, ainda são estes sons, em cascata, que perduram até hoje, na sua lembrança.
Acordou naquela manhã de sol com a mesma alegria de sempre. Já não eram
só as dores na cabeça, nas costas, nas mãos, nas pernas ou no peito. Era todo
um corpo dorido, flagelado pelas agruras que atravessara na vida. Tinha
cicatrizes, sim, das pancadas que tinha sofrido e que haviam vertido sangue,
mas que o tempo também se empenhara em lhe as sarar, embora aquelas
continuassem visivelmente dolorosas. Restavam agora não só as dores físicas mas
também e, sobretudo, as psicológicas. As dores verdadeiras e as dores que já
não sabia se eram dores ou algo intrínseco já faziam parte da sua essência.
Perdera essa consciência e, agora ali, naquele sossego forçado, apenas rodeado
por pessoas que mal conhecia, limitava-se a resistir ao tempo com todo o tempo
do mundo, sem preocupações que não fossem da alma.
Encontrava-se não sabia bem onde, mas isso era irrelevante. Era bem
tratado, tinha várias pessoas que cuidavam dele e aquele lugar era acolhedor.
Sentia-se bem e julgava-se consciente sobre tudo. Aquele retiro da terceira
idade constituía-se para ele como uma casa grande, simpática, acolhedora, bem
equipada e muito agradável para aonde fora viver. Apesar das crescentes
dificuldades motoras, quando lhe permitiam sair, ele não desperdiçava a
oportunidade e lá ia até ao fundo do jardim que adorava. Era um espaço amplo,
rodeado de árvores altas com três caminhos ladeados por canteiros bem tratados.
Uma cerca verde tapetada de arbustos a uns largos metros da casa disfarçava-se
no horizonte e delimitava aquele seu espaço do universo.
Reconfortava-se ali a sentir o cheiro das flores que pontilhavam os
canteiros e, por momentos, regressava aos seus montes e vales de outrora com
profundo sentimento de saudade. Depois gostava de contemplar o céu, as estrelas,
as nuvens e seguia com o olhar os pássaros que saltitavam por ali,
distinguindo, aqui e ali, aquilo que lhe pareciam ser pombas, pardais e melros.
Mas havia naquele jardim algo de muito especial e de que Manuel não
abdicava naquele seu passeio matinal. Num espaço reservado recortado no
caminho, esquivava-se então, como que deslizando para as profundezas e, junto a
um canto, perto do arvoredo que sombreava um pequeno banco de madeira ali existente,
ali estava ela, como que à sua espera, em segredo, em pose suspeita e proibida,
exposta pela nudez, a Sua Estrela da manhã.
Plantada sobre um sopé de mármore muito branco, ali estava ela, linda,
como sempre a vira: a sua musa inspiradora. Aquele momento era como se fosse um
acto derradeiro, mas ao mesmo tempo transmitia-lhe um prazer enorme – mais do
que comer ou dormir – dava-lhe um hiato de continuidade pela vida, vida que,
aos poucos, se escoava em cada dia. Estar ali junto com ela era como vivenciar
o caminho para o Céu. Ao lado daquela que ele considerava ser a Sua Estrela,
era como estar mais perto do sonho de voltar ao seu abraço, ao seu amor, ao seu
sorriso, hoje distante. E falava com ela...
– Bom dia! Disse-lhe, então
Manuel naquele tom e olhar feliz que procura colocar no seu rosto rugado. De sorriso
rasgado e com a ênfase de quem está de bem com a vida, vai escondendo-lhe o
vazio que ele vai, no entanto, sentindo.
– Está tão bom aqui fora, não está?!
Acrescentou ele a afirmar-se de forma positiva pela satisfação que sentia. – Nem sempre me deixam sair –
justificou-se.
– Estou tão contente por estar aqui
a falar contigo! Disse-lhe ainda, apesar do continuado silêncio.
Um ligeiro cheiro a perfume e a flores fez-se, de repente, sentir em seu
redor. Manuel sentiu-o chegar-lhe trazido por uma breve e amena aragem que até
levantou do chão e varreu algumas folhas mortas pelo tempo. Inalou-o com o
prazer de quem está no cimo de uma montanha e contempla extasiado a paisagem, mas,
mais uma vez, ali estava ele, agora escondido na penumbra, na presença do Seu Amor,
este, esculpido em lembranças de boas memórias que interiorizou.
– És linda, sabias?! Já te tinha
dito? Perguntou-lhe ele pela milionésima vez, ainda à espera que ela lhe
retribuísse com o sorriso de outros tempos.
– Gosto muito de ti! Insistiu
ele, na esperança de que ela, pelo menos, desviasse o olhar para ele.
Mas ela continuava hirta e indiferente aos elogios, na sua eloquente
postura, de quem é adorada por muita gente. Seu rosto não transparecia um único
reflexo; ela, alta, imponente no seu pedestal de admiração, ia contemplando o
mundo a seus pés.
Mas ele não desistiu, não se foi abaixo com a indiferença dela, e
continuou, como sempre fazia, no seu inflamado discurso, ainda que de sentido
unilateral, não correspondido.
– Bom, sei que não serei o teu
melhor admirador, aquele que trata melhor de ti, com o carinho que necessitas,
que te oferece as mais bonitas flores, mas dou-te o que tenho de mais puro, o
amor das minhas palavras que brotam do meu coração…
Ela, inexpugnável, fria como a manhã, à espera que o sol a aquecesse,
deixou-se, no entanto, pousar no cabelo, solto ao vento, por uma pomba que veio
ao seu encontro. Pareceu-me sorrir-lhe, satisfeita pela manifestação de
confiança que recebia daquela ave vinda do céu. Pelo menos foi a sensação que Manuel
teve e sentiu-se, de repente, insignificantemente desprezível e só.
Naquela manhã, como em todas as manhãs possíveis, o sol despontava a oriente.
Vermelho, redondo e deslumbrante na sua força de Verão já esquecido, reflectia-se-lhe
no rosto belo, branco e ousado daquela figura fria de contemplação etérea. Ela,
apesar de inerte, espelhava então a altivez de uma rainha, a coragem de um
guerreiro a serenidade e a beleza de uma princesa. Manuel admirava-a por isso.
Olhou então, pela última vez, para aquela figura erguida diante de si,
numa postura altiva e confiante de olhar infinito, indiferente, beijou-lhe os
pés (que era o ponto onde ele conseguia chegar-lhe) e, com a ternura de quem
beija uma criança acabada de nascer, o seu olhar turvou-se do cansaço dos anos,
dos sonhos que tivera e do silêncio das palavras perdidas.
Manuel afastou-se e chorou. Deu dois passos e caiu. Fechou os olhos. O pesadelo
tornara-se num verdadeiro sonho e, no momento em que a mortalha o envolveu, pareceu
sorrir.
(Versão adaptada)
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