PREVISÕES PARA O ANO
Vou aqui partilhar um trabalho que acabei de enviar para as minhas aulas Temas Contemporâneos do Professor Joaquim Letria.
Carlos Alberto
Carlos Alberto
PREVISÕES PARA O ANO (ESTE OU
OUTRO)
Sentei-me
sobre a minha tarimba, virei-me para a parede e risquei com o meu lápis negro
de carpinteiro mais um traço vertical e paralelo a outros sobre um outro
perpendicular. Sessenta, disse mentalmente, sorrindo para os que me faltam ainda
riscar nesta parcela de parede já tão suja e preenchida. Mas só me resta mesmo
sorrir, nos intervalos deste choro que me corrói por dentro. O bom é que mais
de metade da pena perpétua a que fui condenado está cumprida, pelo menos é o
que diz a previsão.
Deitei-me,
olhei mais uma vez para este tecto vazio de estrelas, carregado de nuvens e de
raios que atravessam o universo e admiti, facilmente, que as previsões são más
porque vai haver uma grande tempestade; talvez mesmo um dilúvio.
Quis
adormecer sem me molhar, virei-me para o outro lado tentando cobrir-me com
aquele pobre e velho manto retalhado e a definhar como eu e, como que entrado numa
amálgama de sonhos, dei comigo a perspectivar o que será o ano (este ou outro
qualquer) que tenho pela frente.
Assim,
além das muitas ilusões e dos cortes nas provisões de cada um, dos assaltos à
mão armada do Governo (sobretudo sobre os mais desprotegidos), das trafulhices,
dos interesses instalados e do autismo de quem de direito, dei comigo numa gargalhada
interior por causa da conquista do ansiado título do meu Sporting no campeonato.
Enquanto isso, Jorge Jesus irá deixar o Benfica, e o Paulo Fonseca confessará
que o 2º lugar, à frente do clube do Eusébio é mais uma conquista sobre o
principal rival.
Ah, o
futebol, sempre o futebol... E que tal reaver o emprego perdido e o sustento, reunir
a família desfeita, estudar um pouco e encontrar a outra parte da minha
cara-metade...? Que boas previsões seriam estas relativamente a esta parte do
futuro!
Contudo,
ainda sou dos que não me posso queixar muito; sou um privilegiado: tenho tudo o
que um homem precisa para ser feliz, mesmo que o espaço seja exíguo e fedorento
e que as paredes sejam esfumadas de betão e não de zinco. Estas, pelo menos, proteger-me-ão
do frio que promete gelar o mundo lá fora e também do vento que soprará sem
contemplações e levará os sonhos de muita gente que não dormirá jamais.
Como este
espaço não fica à beira-mar, logo também não correrei o risco de que alguma vaga
traiçoeira me engolirá. Posso ser espancado e ter de ajoelhar por caprichos ou
diretrizes superiores, mas compreendo que estou e estarei aqui porque as
previsões assim o exigem, face aos meus antecedentes e fugir não está nos meus
horizontes. Por outro lado, tenho uma porta de segurança com grades e até uma
janela lá para fora. Tenho ainda uma mesinha, uma cadeira, uma latrina e uma
estante com um livro sagrado de milhares de páginas. Com cama, mesa e roupa
lavada e um sol todos os dias quando não chove, que mais preciso?
Ouvi
também uma vez dizer que a nossa vida é como um puzzle e que só nos devemos
preocupar com as peças que encaixam com a nossa, à nossa volta, porque coisas
como a fome no mundo, por exemplo, deve ser encarada por outros que estejam
mais perto dela e que tenham condições para a erradicar. Não deveremos sentir a
obrigação de querer resolver todos os problemas do Universo. Se ajudarmos os sem-abrigo
na nossa rua já fazemos muito.
Nesta
perspectiva, as previsões para mim, neste capítulo, são, por isso boas, e não
vivo nem viverei na rua. A minha saúde física e mental estarão “au point”, a
minha casa com duas piscinas – uma exterior e outra interior – está a ser
construída na minha cabeça e, portanto, um sonho perto de realizar-se nesta minha
parede quase toda riscada.
Sim, eu
lembro-me do que a minha pequena filha de dez anos me disse no outro dia a
chorar compulsivamente tentando chamar-me à razão: “Pai, é impossível
conseguires ter uma casa, que seja tua, e muito menos com duas piscinas! Tu não
tens rendimentos, estás preso, para sempre; como é que podes prometer ou prever
uma coisa dessas?”
E sobre
o seu pranto enorme sorri, tentei consolá-la e disse-lhe calmamente com
palavras que ela entendesse: “Filha, na vida é fácil fazer previsões do que é
óbvio, porque prever o possível qualquer um consegue; difícil é acreditarmos
com força nas previsões do que queremos para nós e, se pensarmos desta forma, o
impossível torna-se realidade e concretiza-se”.
E nesta
previsão de que seremos a força do que somos capazes de sonhar também serei
capaz de dizer que serei livre, mesmo que aguilhoado por amarras que me prendem
ao sistema e me agarram à vida que me resta. E cantei:
“Cheio de ilusões continuarei a sonhar,
ainda que perdido num emaranhado difuso
de previsões, ardido em guerras e sombras,
confuso:
cantarei com glória, em minha memória,
– quando
ao fim conseguir chegar –
a alegria da minha vitória.”
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