PICOS DA EUROPA - CAP IV
Aqui vai a quarta parte, já não era sem tempo, digo eu. Espero que gostem tanto quanto eu gostei. Neste texto acrescentei mais alguns detalhes ao original.
CAPÍTULO IV
Oviedo, 7 de Agosto de
2012
Bom dia, Oviedo! São oito horas. Acordei (acordaram-me pelo
telefone), às seis e meia da manhã. Estava com uma dor de cabeça. Mas nada de
grave e que me espante, estas cefaleias matinais.
Tinha pedido que me despertassem às sete, e fizeram-no, só
que já o tinham feito meia hora antes, na hora do “acordar do grupo”. Fiquei
lixado, mas não relevei o engano da recepção.
O meu pequeno-almoço foi bom e variado, à base de fruta,
incluindo o habitual melão com presunto e sumo de laranja natural. Bebi depois
um café, mas antes, não resisti, e ainda me atirei a uns deliciosos croissants
com doce de geleia. Nada mau para começar um dia que acordou com umas nuvens a
lembrar aqueles flocos de algodão, todos dispostos muito certinhos no céu. É a
imagem que tenho daqui. Está fresco, mas está-se bem com os 18ºC que mostra o
termómetro digital do autocarro.
De manhã as conversas são sempre as mesmas. “ – Então dormiu
bem? Eu não consegui dormir, com o barulho” – queixa-se um. Outro diz que teve
insónias e que só adormeceu lá para as tantas.
Eu, apesar do pequeno barulho do ar condicionado do corredor,
consegui adormecer agarrado à almofada comprida, em forma de chouriço, e dormi
acho que bem, apesar da tal dor de cabeça com que acordei, mas que, entretanto,
já se desvaneceu com o pequeno-almoço.
Saímos. São 08:05h e o programa de hoje passa por irmos de
manhã para Covadonga com passagem por Potes e, de tarde, Ribadesella e Gijón. O
tempo está bom e esperam-se 25ªC.
Estamos em Oviedo, a atravessar a cidade e vamos direitos à
serra que já descortino lá ao longe. As nuvens no céu parecem ondulações de
areia na praia na maré baixa. Um espectáculo magnífico.
11:30h e já estamos de saída de Covadonga. A chegada aqui não
foi muito pacífica porque havia uma excursão opcional aos Lagos dos Picos da
Europa e só uma minoria queria ir. O Rui argumentou várias desculpas, como
perda de tempo para os que não queriam ir e eu acabei por tomar o partido do
guia e, por solidariedade não fui, embora acabasse por me arrepender.
Neste lugar o ex-libris é a gruta da Santa de Covadonga que
fica incrustada, acima do nosso olhar, numa rocha, como um presépio suspenso,
aparentemente inacessível, sobre um lago natural para onde escorre uma pequena cascata
de água. Chega-se lá por uma escadaria de pedra, contígua também a umas casas
existentes, ou através de um túnel lateral escavado na montanha, que nós
percorremos, por onde se entra passando três cruzes de pedra apoiadas num
pedestal também em pedra. No fim deste túnel ergue-se então, em frente, uma
pequena capela, que se expõe lateralmente à abertura com vista para o lago, na
rasante e a pique.
À direita da gruta escavada e aberta está a Santa de
Covadonga a olhar para a paisagem que se abre em frente. É uma pequena imagem
de cerca de meio metro, pouco mais, corpo inteiro, coberta com um manto
vermelho debruado a ouro. Sobre a cabeça tem uma coroa e uma auréola também
ourada e na mão direita uma flor também do mesmo material. Está colocada atrás
de um pequeno altar sobre uma base de cabeças de anjos e, apesar do exíguo espaço,
há ainda uns bancos em madeira trabalhada onde se sentam fiéis; e havia quem
estivesse a rezar. Outros tiravam fotos para a posteridade e houve quem fugisse
das escadas…
A ideia com que se fica deste lugar estranhamente localizado numa
consola rochosa é que se entra numa pequena ermida exterior onde se fundem
paredes e tecto num invólucro irregular e granítico que se abre como uma
espécie de concha alveolar e profunda. No chão há também um tapete vermelho que
nos silencia o andar sobre a pedra, e do tecto, com a Santa de Covadonga no
meio, pendem dois candelabros metálicos com duas velas vermelhas.
Este local, além de religioso, é ainda muito bucólico e
aprazível, e não se esgota na gruta com a capela e a imagem da Santa, que
visitámos. A paisagem é maravilhosa: com muita vegetação, recortada por
ribeiras e pequenas cascatas que nos deliciam o olhar e entoam canções de imaginárias
sereias.
Pelo meio “troquei” umas fotos com uma das passageiras do
autocarro e ainda brinquei com outra do mesmo grupo simulando atirar-lhe a mala
para dentro do lago. Enfim, um pequeno momento de aproximação ou abordagem de
pessoas que estão ali connosco, na mesma viagem pelos sonhos.
No lago, sobre uma ponte de blocos de pedra, atirei uma moeda
à espera que o amor assistisse, mas continuei sozinho no meu percurso e pelas
minhas deambulações, embora o olhar tivesse parado numa cumplicidade mútua. Cada
um de nós seguiu o seu destino e eu desci mais escadas até ao fundo do vale.
Fui então explorar este pequeno jardim florido de hortênsias
lilases entre leões de pedra, em guarda sobre a entrada. E entre a paz e
sossego do arvoredo, encontrei outras escadas que galguei em êxtase, subi e
desci, caminhei e corri sobre plataformas de madeira que se baloiçavam em grossas
cordas, percorri caminhos de extrema beleza natural e, no silêncio das formas
que me envolveram numa carícia, fui à procura finalmente daquele que constitui
também o Corpo central e religioso desta localidade que é a Catedral de
Covadonga.
Situada bem lá no alto, tive que emergir das profundezas e
percorrer os antigos jardins do Parque del Príncipe cuja porta de entrada, de
duas folhas em ferro, ainda ostentam, na verga da moldura, aquele nome.
Mas é preciso alguma preparação física para, num lugar como
este, se apreciar tudo o que o envolve, nomeadamente percorrer os trilhos de
pedras no meio de riachos, galgar as escadas, contornar as raízes das árvores
que se expandem para além dos troncos e depois, olhar para cima e ver aquela
Igreja recortada na paisagem, cujas paredes parecem terminar no céu.
A Basílica de Santa Maria Real de Covadonga é uma construção
de estilo românico executada com pedras de calcário em tons de cor-de-rosa. Construída
sobre uma plataforma regular que encontramos no cimo de um pico, por uma
estrada de alcatrão que subimos, destaca-se da paisagem verde pelos seus tons que
me pareceram mais de um vermelho ocre. De aspecto sólido, sóbrio e austero é um
edifício de sumptuosidade religiosa, à dimensão de uma grande Igreja. Ergue-se
em três naves, sendo a nave central maior e as duas laterais mais pequenas,
constituindo estas os corredores do seu interior. É, realmente, um edifício
belo e simultaneamente estranho pelas suas formas e cores no meio daquela
paisagem carregada de verdes profundos e em inexorável contraste.
Há imensos turistas por aqui, que olham, observam, comentam,
tiram fotos, rezam. Há também gente devota que vem sobretudo aqui para rezar.
Outros ainda apenas para usufruírem desta inexaurível beleza natural e
magnífica. De repente, observei três padres de batinas pretas que saíram da
Igreja e caminharam pelo adro lateral, conversando. Iriam talvez aproveitar o
excelente clima de sol que se fazia sentir. Ao longe, porque se afastavam de
mim, tentei, ainda que em contra luz, umas fotos daquele momento. Ficaram.
Mas toda a envolvente aqui é fascinante, encerrando até um
certo mistério todas as cores, formas e sentidos que somos levados a
experimentar. Este parece ser um dos locais sagrados eleitos, longe de tudo,
como se estivesse fora do mundo e inacessível. É um local onde a paisagem, os
muitos tons de verdes nos atiram e projectam para as nossas ilhas no meio do
Atlântico e os seus edílicos sentidos. As emoções são fortes. Captamo-las.
Agora que este local ficou para trás e nos restam as memórias
dele, fico com pena de não ter absorvido a experiência dos Lagos, cujo passeio,
dizem os que foram, foi simplesmente maravilhoso. Por isso me arrependi.
Depois de menos de três horas de visitas, reconhecimento e
descobertas, deixámos assim a Gruta de Pelágio, a Santa de Covadonga e a Basílica
Real e vamos agora a descer montanha, estrada abaixo, rumo a Potes onde
almoçaremos.
Chegámos a Potes às 13:30h. Saí do autocarro, juntei-me ao
casal Abreu e fomos, os três, almoçar a uma esplanada aqui mesmo no centro. Ele
trazia a indicação de um restaurante especial, mas acabámos por reparar num
local harmonioso, logo ali, num largo abaixo da rua onde estávamos. Fomos
inspecionar descendo umas escadas e encontrámos um ambiente muito aprazível,
com várias mesas cobertas com uns chapéus abrangentes e não foi difícil decidirmos
ficar e de escolhermos um sítio para nos sentarmos.
A minha refeição de cabrito estava com muito bom aspecto e foi
muito apetitosa. Bebemos vinho da região por uma garrafa com uma forma pouco
comum, a lembrar um daqueles frascos antigos de remédios, só que de capacidade
maior. O vinho foi tinto com sabor frutado e a companhia muito agradável. O
assunto de conversa foi transversal e a cultura ficou à borda do prato. Não se
falou de Alexandre Herculano e de Eurico Presbítero, nem da região de Cantábria,
onde estamos, deixando para trás as Astúrias.
Potes é um local pitoresco, muito turístico, mas que me
parece ficar nos confins de tudo. Não tivemos tempo para ver nada, praticamente
só tivemos tempo para almoçar. Viemos aqui, penso que, apenas pelo passeio
através de um desfiladeiro que percorremos, realmente apaixonante e muito
bonito, mesmo pela agressividade pura de uma paisagem que parece virgem.
E vamos voltar para trás. Vamos regressar e percorrer de novo
os vinte e dois quilómetros desse desfiladeiro, de nome “Hermidas”, e que nos
trouxe até Potes. É um caminho por um vale estreito, imponente, assombroso
quanto assustador, ladeado de monstruosas elevações de montanhas que se erguem por
cima de nós, dantescamente, quase até ao céu e que vorazmente nos parecem engolir
em cada metro de estrada que percorremos. Guardamos cada passada do percurso
com uma foto, cada uma diferente da anterior, até consumirmos quase toda a
bateria, tanta é a beleza disponibilizada nesta garganta do mundo, algures nos
Picos da Europa, em Espanha.
A N-621 é uma estrada
que serpenteia por este desfiladeiro ao longo de um rio, o Deva e, porque
estamos no verão, está meio vazio.
Potes é um local muito pequeno, muito recatado e bonito a
fazer-me lembrar um postal ilustrado, tudo muito bem composto e arrumadinho. E
apesar da sua localização no meio do nada e de difícil acesso, é um local muito
procurado, quer no verão, quer no inverno. No verão é esta paisagem
deslumbrante pela sumptuosidade: o caminho através do desfiladeiro com as
montanhas rochosas a desafiarem-nos a vista. E o rio, em baixo, sempre ao nosso
lado, a escorrer por entre um estreito leito de águas transparentes. No inverno,
dizem, é o espectáculo do gelo que cobre as altas montanhas, que se elevam a
mais de 2500m, e é destino para esquiadores. Sim, fica-se com a boa sensação de
um lugar paradisíaco que vale a pena visitar e ficar, se for possível. Não é o
nosso caso. São 15:30h, estão 27ºC e estamos já de saída.
São 16:35h e vamos a caminho de Ribadesella. Já passámos por
esta estrada rumo a Oviedo. Aí mais à frente devemos derivar para outra estrada
qualquer que nos levará a Ribadesella que, ao que julgo saber, será também uma
estância balnear.
E estou a escrever agora porque está imenso calor aqui dentro
(24ºC); vai o sol a bater-me na nuca e já estava a fechar os olhos, da moleza,
para dormir. Um desperdício. Deve ter sido do excelente almoço que comi. Então,
para obviar isso, resolvi vir para estas páginas que quero que transmitam as
coisas agradáveis que estou a viver, acordado. Embora “os sonhos” que pudesse
ter pudessem constituir uma boa alternativa, penso que o essencial e importante
agora é “a realidade”, vivida nesta viagem e, pois então, quero e devo estar de
olhinhos bem abertos para não perder pitada dela. Está bom de ver…
A verdade é que quero também que a minha descrição dela não
se torne mais aborrecida e estou a alterar um pouco o estilo. Gostava de poder
e ser capaz de descrever as sensações da alma em vez de referir que a estrada que
vou é esta ou é aquela. É a escrever o que se sente, sobre aquilo que nos
rodeia - nomeadamente aqui numa página de Diário de uma Viagem - que faz com
que a leitura possa ser mais apelativa para quem lê e, dessa forma, valha a
pena perder tempo a ler o que alguém escreveu.
E, de facto, a sensação ou as sensações que os Picos da
Europa nos transmitiram são únicas: tenebrosas e perigosas pela sinuosidade da
estrada, mas ao mesmo tempo deliciosas e aventureiras, numa transmissão pela alma
que nos relega para a nossa pequenez, comparando-nos infinitesimamente com a
grandiosidade do mundo onde assentamos.
A cordilheira de Hermidas, que termina quase em Potes, envia-nos
para o espírito uma brisa que nos arrepia, de quem entra num labirinto e de
onde não sabe se sai. Pelo rio Deva, reparamos que há troços que trazem consigo
zonas pedestres, laterais, meias suspensas e que se podem percorrer em harmonia
com a corrente do leito. Podemos sentir o quanto deve ser delicioso palmilhar
aqueles estreitos caminhos, ao som do gorgolhar das águas, por onde só há
espaço para se andar em fila indiana.
Estamos agora de novo a aproximar-nos do mar, mas
curiosamente o clima piorou. É suposto irmos para uma zona balnear, onde haja
um clima de sol e calor, além de que estamos em pleno agosto, no entanto, são
nuvens altas e cinzentas que temos a horizonte. Mas não vai chover, longe
disso. E já vejo o imenso Atlântico a acenar-me com os braços aqui perto de Villahormes.
Esta vai ser uma visita completamente diferente das que fizemos
da parte da manhã. E volto a acentuar que deve ter sido, até agora, o melhor
deste passeio, embora, obviamente, este ainda não tenha terminado.
Na minha memória trago ainda as sensações do que senti em
Covadonga. E vou aqui a regurgitar pensamentos sobre a intensa energia, sobre o
imenso tempo de devoção à Santa padroeira. Depois, o percurso por aquele
fenomenal desfiladeiro e as imagens que nos ficarão no imaginário, cuidadosamente
arrumadas num rolo com um laço colorido à volta, dentro de uma gaveta onde
guardamos as partes felizes das coisas boas da nossa vida. E, por inerência,
também gravado nestas humildes páginas de histórias e sentidos, mesmo que estas
sejam apenas pequenas pinceladas e pouco possam revelar do que se pode interiorizar
e sentir.
São momentos únicos que, provavelmente, mereceriam mais tempo
para desfrutar, nomeadamente, aqueles a meio do caminho da ribeira, nalguns
pontos meio vazia, e de onde se salientavam os calhaus brancos e roliços que
esteiravam o fundo do rio. Um rio onde também se criam trutas, um peixe muito
cultivado por aquelas paragens.
E a viagem para Ribadesella continua. Pensava há pouco que
estávamos a chegar, já se via o mar, mas o certo é que neste momento estamos no
meio de uma serra de grandes vertentes apenas salpicada de verde e onde,
provavelmente, será inóspito estar.
Já respirámos o ar da montanha, vamos agora respirar um
bocadinho do ar do mar. Entrámos em Ribadesella pela carretera N-632 com um rio
a receber-nos logo à entrada. Pejado de gaivotas debicando na areia da maré
baixa, estas saudaram-nos efusivamente numa belíssima imagem de lusco-fusco e
de sombras, como se do crepúsculo se tratasse.
São agora 17:15h e vamos sair para dar um pequeno giro. Está agora
bom tempo e o termómetro indica 25ºC.
Ribadesella é um local pacato, do género de São Vicente, onde
se está bem, tranquilamente, mas com apenas um tímido movimento turístico. Foi
a ideia que me deixou. É uma cidadela com características ribeirinhas onde a
pesca também parece ser um atrativo, além dos desportos náuticos, nomeadamente
a canoagem, que até tem aqui um monumento, à beira-rio, erigido. Este monumento
evoca as provas que aqui se efectuam com uma representação em pedra sobre um
plinto, de uma canoa com dois atletas sentados dentro dela com as pás nas mãos,
um deles com os braços erguidos de uma vitória, talvez.
É também conhecida esta pequena cidade costeira porque terá
nascido por estas paragens a actual princesa Letizia Ortiz, futura rainha de
Espanha. Este título, no entanto, diz-nos o guia, só o terá por morte de Juan
Carlos, se continuar casada com Filipe de Bourbon, príncipe das Astúrias e se,
entretanto, não mudarem a constituição espanhola.
Letizia tem aqui junto ao rio uma placa onde se lê: “Passeo
Marítimo Princesa Letizia - Hija adoptiva de Ribadesella - 2007”, colocada em
sua homenagem, mas que desta forma trará, com certeza, mais algum protagonismo
a este lugar que é, de facto também, muito bonito e aprazível.
E no pouco tempo que aqui estivemos não deu para ver muito.
Diria que foi mais uma paragem técnica que outra coisa. Dei, no entanto, conta
que há uma pequena praia fluvial, do lado de lá, junto à foz, e para aonde se
vai por uma ponte baixa, que é estrada nacional, e que atravessa o rio Sella. Pelo
meio, o meu olhar encalhou numa língua de terra onde estão pousadas também
imensas gaivotas e, por fim, ao fundo, vê-se uma marina de pequenas embarcações.
Deste lado estão também vários pequenos barcos de pesca encostados ao paredão
que sustenta o famoso passeio pedestre aqui contíguo.
Os edifícios que encontramos aqui junto à orla marítima são
baixos, de apartamentos já com alguns anos, sem requintes, e terão até seis
andares de altura. Estes refletem-se, em harmonia de cores de tons ocre e
branco, de aspecto mais descontraído, no rio, onde se espelham, transmitindo-nos
uma calma enleante que cativa. Há também lojas com artigos artesanais e os
cafés do costume, mas estes com caraterísticas provincianas.
Estamos agora a caminho de Gijon onde vamos fazer também uma
pequena paragem.
Para trás Ribadesella: o rio, as gaivotas, a marina, os
barcos, as lojas, as vistas e… que bem se estava ali. Mas o nosso tempo é outro
e perspectiva-se já o regresso com a chegada a Oviedo por volta das oito e meia,
com esse desvio por Gijon.
Mas fomos a Gijon? Não. Passámos por Gijon. Havia planos para
pararmos, mas não foi possível por causa da imensa confusão. Entrámos na
cidade, passámos de autocarro à beira da praia e esta, pudemos ver, estava
pejada de gente: milhares de pessoas, quer no areal, quer no calçadão contíguo
entre a estrada e a praia. Estava um ambiente típico de férias, com muito sol e
calor, gente de um lado para o outro, um pouco caótico mesmo, incluindo o
trânsito automóvel por onde andávamos, sem conseguirmos estacionar.
Aqui, pude observar, as barracas armadas em tendas coloridas perfilavam-se
em várias ordens pela praia. E estas não são apenas para proteger as pessoas do
sol, são, sobretudo, para as proteger do vento que sopra sempre com muita força
por estas paragens. Deu facilmente para percepcionar isso, pela agitação das
bandeiras hasteadas e pelo varrimento do mar.
Depois deste giro pela “praia” e da impossibilidade de sentirmos
sequer a intensidade do vento que se faria sentir, o autobus fez uma incursão
pelo centro da cidade, mas nada que acrescentasse ou enriquecesse a viagem; deu
“meia volta” e regressámos. Procurou, no seu percurso, apenas a porta de saída
da cidade, rumo a Oviedo e saímos assim, sem honra nem glória, sem termos tido tempo
para respirar sequer o ar exterior.
À primeira vista, fica-se com muita pena de não ficar, antes
por aqui, por Gijon, em vez de Oviedo. E questiona-se a opção. Parece-me muito
melhor e mais apelativa a terra do futebol da equipa do Sporting do que a dos hoquistas
das bandas de Oviedo. Muita diversidade (festas, eventos, exposições
permanentes, etc.), mais movimento, mais vida e a opção praia, mesmo ventosa. E
creio que serão razões económicas “de preço” da promotora deste passeio que nos
levam para a cidade industrial de Oviedo em detrimento da “mais desportiva”
Gijon. Se eu pudesse escolher, nem hesitaria, escolheria Gijon para ficar.
E vamos já a caminho de casa, ou seja, do nosso hotel e eu daquele
pequeno quarto do Ayre Hotel Ramiro I.
Está um clima excelente de 23ºC quando são agora 19:06h e
rolamos a boa velocidade na autopista A-66 com chegada prevista para daqui a
meia hora. Há muito trânsito, mas sobretudo no sentido contrário. E percebe-se
a rivalidade Gijon/Oviedo.
O jantar. Sentei-me à mesa no mesmo lugar de ontem. Esperava
ter na minha frente o casal Abreu, já que normalmente respeitam-se os lugares,
e foram eles que se sentaram ali. Só que alguém se antecipou e, em vez do casal
Abreu, sentou-se um outro grupo onde se inclui uma senhora sozinha. Foi ela
própria que sugeriu sentarem-se ali, junto a mim e ela ficou à minha frente.
Não valorizei esse facto. É uma mulher que terá passado há pouco tempo os
cinquenta. Não é o meu género, mas as pessoas não são o nosso género e
revelam-se depois pessoas com quem nos identificamos de alguma forma.
Acabou por ser um agradável e animado jantar com assuntos
transversais, onde naturalmente me incluí, embora o tema dominante tivesse sido
a visita da manhã aos Lagos dos Picos da Europa (que não fiz), mas admitia-se agora
ali a possibilidade de uma passeata até ao centro da cidade, depois da refeição.
O jantar terminou e eu desapareci. Fui, no entanto, ao quarto
buscar um blusão e saí na expectativa de reencontrar, às portas do hotel, as
pessoas com quem jantara e ir com elas até à cidade. Pareceram-me pessoas
acessíveis e uma boa companhia para partilhar e reexplorar a cidade que ontem
tanto me desiludira. Com elas hoje seria, provavelmente, muito mais animado e também
um bom pretexto para cimentar conhecimentos mútuos.
Chegado ao hall não encontrei quem esperava, mas não perdi
muito tempo e, sem me deter, resolvi ir na mesma até ao centro, embora indo por
outros sítios, explorando outras ruas, mesmo desertas à saída do hotel, àquela
hora tardia. E em boa hora o fiz porque acabei por descobrir uma outra faceta
de Oviedo, que ontem me escapara, deixando-me esta cidade, hoje, outra
impressão.
Oviedo mostrou-me agora outra roupagem. Aquela cidade com
bares, restaurantes, com algum movimento nocturno e animação, que eu esperava
encontrar, estava ali mesmo ao meu lado. Só que chegado ao centro, em vez de
virar à esquerda, como fiz ontem, devia ter virado à direita e ter-me ia
deparado com algo totalmente diferente. Ontem descobri o lado comercial com as
lojas obviamente fechadas; hoje descobri a zona histórica e simultaneamente de
lazer que ontem procurava. Aquilo que não vi aqui e que vi quer em Burgos, quer
em Bilbao, foram as casas de alterne. Aliás, bares de alterne, em evidente, descarada
e manifesta atitude de engate, com as mulheres à porta, vi em Santander. Em
Burgos e Bilbao pareceram-me, no entanto, mais discrectas e dissimuladas. Aqui
não vi nada nesse género, (não que andasse à procura) nesta zona que explorei.
Em sentido contrário, o engraçado e inesperado foi o que
acabou por me acontecer. Estava eu absorto nessa busca pela cidade histórica,
enquanto tentava perceber na noite escura iluminada apenas por uns focos
amarelados projectados para uma imponente igreja, de que construção se tratava,
dei comigo a partilhar aquele mesmo monumento com o casal Abreu que, nas
sombras da Catedral de Oviedo, a meu lado, também a contemplava e admirava. Acabámos
todos sorrindo pela coincidência e acabámos por passar o resto da noite juntos percorrendo
com o olhar os vários monumentos daquelas praças. Ainda tirámos fotos e
partilhámos conversas.
A certa altura, em plena Plaza de la Constitución, interrompidos
até por alguém que nos interpelava com uma pergunta, em espanhol, sobre a
localização de algo que procuravam.
Nós, de frente para a Igreja de San Isidro, com o edifício do
Ayuntamiento de Oviedo ao nosso lado, falávamos de arquitectura e de literatura,
abordando as obras de Eça de Queirós da qual Gracinda Abreu é profunda
conhecedora, às obras polémicas de Saramago. Confessei-lhes que me penitenciava
porque “Os Maias” nunca os lera totalmente e da literatura de Saramago não sou
grande fã. Relativamente aos Maias reconheci a minha falha imperdoável e prometi-lhes,
como a mim mesmo, que os iria ler em breve; já quanto à obra de Saramago conheço
pouco mais do que os meros títulos de alguns dos seus livros e, de comum, temos
apenas o dia da data do nosso nascimento.
De Saramago soube que Luís Filipe de Abreu foi amigo pessoal,
mas nunca se considerou adepto, nem afim do anti-Cristo que Saramago revelou
mesmo até à sua morte.
E ali estava eu, embrenhado em assuntos como arquitectura e
mesmo literatura, dialogando como se fosse um entendido, como se os dominasse,
e logo com o casal Abreu, pessoas de um nível com o qual não me posso sequer
ombrear, revelando eles uma cultura intelectual e humana acima da média. Além
de uma perfeita e conhecedora cronologia dos factos históricos sobre a origem e
estilo de obras de que falavam, tinham ainda o conhecimento profundo e exaustivo
das respectivas épocas em que ocorreram, assim como os demais detalhes que,
efectivamente, o senso comum (onde me incluo) desconhece e que não valoriza. E
eu, obviamente, senti-me muito pequeno, ainda que honrado pelo diálogo e pela
partilha de conhecimentos.
A noite avançou e nós
fomos regressando ao hotel. A Calle de Calvo Sotello que subimos por entre
dissertações, comentários e opiniões para chegarmos ao nosso destino, galgámo-la
descontraidamente e sem queixumes.
Sem ter feito por isso, concluí que acrescentei à minha noite
um enriquecimento cultural fantástico. Como um quadro, feito, desenhado e
pintado a quatro mãos, com uma notável palete de cores, reflexos, formas e
sentidos, à imagem de verdadeiros e incomuns artistas, olho neste preciso
momento para essa tela, cheia de cores e brilhos, espelhada ainda no meu
consciente que me abana e acorda, e sinto-me um homem especial, diferente e
feliz a olhar para o acaso que me retribui a sorrir.
Acabo assim agora a reflectir, antes de me abandonar dos
pensamentos do que foi este cheio dia, sobre o acaso deste casual encontro que acabei
de ter no centro da cidade, totalmente em contraste e em contraciclo com o que
procurei no pretexto para a saída. Pois é, ninguém sabe para o que está
guardado. Valeu a pena.
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