PICOS DA EUROPA - CAP IV

Aqui vai a quarta parte, já não era sem tempo, digo eu. Espero que gostem tanto quanto eu gostei. Neste texto acrescentei mais alguns detalhes ao original.


CAPÍTULO IV

Oviedo, 7 de Agosto de 2012

Bom dia, Oviedo! São oito horas. Acordei (acordaram-me pelo telefone), às seis e meia da manhã. Estava com uma dor de cabeça. Mas nada de grave e que me espante, estas cefaleias matinais.

Tinha pedido que me despertassem às sete, e fizeram-no, só que já o tinham feito meia hora antes, na hora do “acordar do grupo”. Fiquei lixado, mas não relevei o engano da recepção.

O meu pequeno-almoço foi bom e variado, à base de fruta, incluindo o habitual melão com presunto e sumo de laranja natural. Bebi depois um café, mas antes, não resisti, e ainda me atirei a uns deliciosos croissants com doce de geleia. Nada mau para começar um dia que acordou com umas nuvens a lembrar aqueles flocos de algodão, todos dispostos muito certinhos no céu. É a imagem que tenho daqui. Está fresco, mas está-se bem com os 18ºC que mostra o termómetro digital do autocarro.

De manhã as conversas são sempre as mesmas. “ – Então dormiu bem? Eu não consegui dormir, com o barulho” – queixa-se um. Outro diz que teve insónias e que só adormeceu lá para as tantas.

Eu, apesar do pequeno barulho do ar condicionado do corredor, consegui adormecer agarrado à almofada comprida, em forma de chouriço, e dormi acho que bem, apesar da tal dor de cabeça com que acordei, mas que, entretanto, já se desvaneceu com o pequeno-almoço.

Saímos. São 08:05h e o programa de hoje passa por irmos de manhã para Covadonga com passagem por Potes e, de tarde, Ribadesella e Gijón. O tempo está bom e esperam-se 25ªC.

Estamos em Oviedo, a atravessar a cidade e vamos direitos à serra que já descortino lá ao longe. As nuvens no céu parecem ondulações de areia na praia na maré baixa. Um espectáculo magnífico.

11:30h e já estamos de saída de Covadonga. A chegada aqui não foi muito pacífica porque havia uma excursão opcional aos Lagos dos Picos da Europa e só uma minoria queria ir. O Rui argumentou várias desculpas, como perda de tempo para os que não queriam ir e eu acabei por tomar o partido do guia e, por solidariedade não fui, embora acabasse por me arrepender.

Neste lugar o ex-libris é a gruta da Santa de Covadonga que fica incrustada, acima do nosso olhar, numa rocha, como um presépio suspenso, aparentemente inacessível, sobre um lago natural para onde escorre uma pequena cascata de água. Chega-se lá por uma escadaria de pedra, contígua também a umas casas existentes, ou através de um túnel lateral escavado na montanha, que nós percorremos, por onde se entra passando três cruzes de pedra apoiadas num pedestal também em pedra. No fim deste túnel ergue-se então, em frente, uma pequena capela, que se expõe lateralmente à abertura com vista para o lago, na rasante e a pique.

À direita da gruta escavada e aberta está a Santa de Covadonga a olhar para a paisagem que se abre em frente. É uma pequena imagem de cerca de meio metro, pouco mais, corpo inteiro, coberta com um manto vermelho debruado a ouro. Sobre a cabeça tem uma coroa e uma auréola também ourada e na mão direita uma flor também do mesmo material. Está colocada atrás de um pequeno altar sobre uma base de cabeças de anjos e, apesar do exíguo espaço, há ainda uns bancos em madeira trabalhada onde se sentam fiéis; e havia quem estivesse a rezar. Outros tiravam fotos para a posteridade e houve quem fugisse das escadas…

A ideia com que se fica deste lugar estranhamente localizado numa consola rochosa é que se entra numa pequena ermida exterior onde se fundem paredes e tecto num invólucro irregular e granítico que se abre como uma espécie de concha alveolar e profunda. No chão há também um tapete vermelho que nos silencia o andar sobre a pedra, e do tecto, com a Santa de Covadonga no meio, pendem dois candelabros metálicos com duas velas vermelhas.

Este local, além de religioso, é ainda muito bucólico e aprazível, e não se esgota na gruta com a capela e a imagem da Santa, que visitámos. A paisagem é maravilhosa: com muita vegetação, recortada por ribeiras e pequenas cascatas que nos deliciam o olhar e entoam canções de imaginárias sereias.

Pelo meio “troquei” umas fotos com uma das passageiras do autocarro e ainda brinquei com outra do mesmo grupo simulando atirar-lhe a mala para dentro do lago. Enfim, um pequeno momento de aproximação ou abordagem de pessoas que estão ali connosco, na mesma viagem pelos sonhos.

No lago, sobre uma ponte de blocos de pedra, atirei uma moeda à espera que o amor assistisse, mas continuei sozinho no meu percurso e pelas minhas deambulações, embora o olhar tivesse parado numa cumplicidade mútua. Cada um de nós seguiu o seu destino e eu desci mais escadas até ao fundo do vale.

Fui então explorar este pequeno jardim florido de hortênsias lilases entre leões de pedra, em guarda sobre a entrada. E entre a paz e sossego do arvoredo, encontrei outras escadas que galguei em êxtase, subi e desci, caminhei e corri sobre plataformas de madeira que se baloiçavam em grossas cordas, percorri caminhos de extrema beleza natural e, no silêncio das formas que me envolveram numa carícia, fui à procura finalmente daquele que constitui também o Corpo central e religioso desta localidade que é a Catedral de Covadonga.

Situada bem lá no alto, tive que emergir das profundezas e percorrer os antigos jardins do Parque del Príncipe cuja porta de entrada, de duas folhas em ferro, ainda ostentam, na verga da moldura, aquele nome.

Mas é preciso alguma preparação física para, num lugar como este, se apreciar tudo o que o envolve, nomeadamente percorrer os trilhos de pedras no meio de riachos, galgar as escadas, contornar as raízes das árvores que se expandem para além dos troncos e depois, olhar para cima e ver aquela Igreja recortada na paisagem, cujas paredes parecem terminar no céu.

A Basílica de Santa Maria Real de Covadonga é uma construção de estilo românico executada com pedras de calcário em tons de cor-de-rosa. Construída sobre uma plataforma regular que encontramos no cimo de um pico, por uma estrada de alcatrão que subimos, destaca-se da paisagem verde pelos seus tons que me pareceram mais de um vermelho ocre. De aspecto sólido, sóbrio e austero é um edifício de sumptuosidade religiosa, à dimensão de uma grande Igreja. Ergue-se em três naves, sendo a nave central maior e as duas laterais mais pequenas, constituindo estas os corredores do seu interior. É, realmente, um edifício belo e simultaneamente estranho pelas suas formas e cores no meio daquela paisagem carregada de verdes profundos e em inexorável contraste.

Há imensos turistas por aqui, que olham, observam, comentam, tiram fotos, rezam. Há também gente devota que vem sobretudo aqui para rezar. Outros ainda apenas para usufruírem desta inexaurível beleza natural e magnífica. De repente, observei três padres de batinas pretas que saíram da Igreja e caminharam pelo adro lateral, conversando. Iriam talvez aproveitar o excelente clima de sol que se fazia sentir. Ao longe, porque se afastavam de mim, tentei, ainda que em contra luz, umas fotos daquele momento. Ficaram.

Mas toda a envolvente aqui é fascinante, encerrando até um certo mistério todas as cores, formas e sentidos que somos levados a experimentar. Este parece ser um dos locais sagrados eleitos, longe de tudo, como se estivesse fora do mundo e inacessível. É um local onde a paisagem, os muitos tons de verdes nos atiram e projectam para as nossas ilhas no meio do Atlântico e os seus edílicos sentidos. As emoções são fortes. Captamo-las.

Agora que este local ficou para trás e nos restam as memórias dele, fico com pena de não ter absorvido a experiência dos Lagos, cujo passeio, dizem os que foram, foi simplesmente maravilhoso. Por isso me arrependi.

Depois de menos de três horas de visitas, reconhecimento e descobertas, deixámos assim a Gruta de Pelágio, a Santa de Covadonga e a Basílica Real e vamos agora a descer montanha, estrada abaixo, rumo a Potes onde almoçaremos.

Chegámos a Potes às 13:30h. Saí do autocarro, juntei-me ao casal Abreu e fomos, os três, almoçar a uma esplanada aqui mesmo no centro. Ele trazia a indicação de um restaurante especial, mas acabámos por reparar num local harmonioso, logo ali, num largo abaixo da rua onde estávamos. Fomos inspecionar descendo umas escadas e encontrámos um ambiente muito aprazível, com várias mesas cobertas com uns chapéus abrangentes e não foi difícil decidirmos ficar e de escolhermos um sítio para nos sentarmos.

A minha refeição de cabrito estava com muito bom aspecto e foi muito apetitosa. Bebemos vinho da região por uma garrafa com uma forma pouco comum, a lembrar um daqueles frascos antigos de remédios, só que de capacidade maior. O vinho foi tinto com sabor frutado e a companhia muito agradável. O assunto de conversa foi transversal e a cultura ficou à borda do prato. Não se falou de Alexandre Herculano e de Eurico Presbítero, nem da região de Cantábria, onde estamos, deixando para trás as Astúrias.

Potes é um local pitoresco, muito turístico, mas que me parece ficar nos confins de tudo. Não tivemos tempo para ver nada, praticamente só tivemos tempo para almoçar. Viemos aqui, penso que, apenas pelo passeio através de um desfiladeiro que percorremos, realmente apaixonante e muito bonito, mesmo pela agressividade pura de uma paisagem que parece virgem.

E vamos voltar para trás. Vamos regressar e percorrer de novo os vinte e dois quilómetros desse desfiladeiro, de nome “Hermidas”, e que nos trouxe até Potes. É um caminho por um vale estreito, imponente, assombroso quanto assustador, ladeado de monstruosas elevações de montanhas que se erguem por cima de nós, dantescamente, quase até ao céu e que vorazmente nos parecem engolir em cada metro de estrada que percorremos. Guardamos cada passada do percurso com uma foto, cada uma diferente da anterior, até consumirmos quase toda a bateria, tanta é a beleza disponibilizada nesta garganta do mundo, algures nos Picos da Europa, em Espanha.

 A N-621 é uma estrada que serpenteia por este desfiladeiro ao longo de um rio, o Deva e, porque estamos no verão, está meio vazio.

Potes é um local muito pequeno, muito recatado e bonito a fazer-me lembrar um postal ilustrado, tudo muito bem composto e arrumadinho. E apesar da sua localização no meio do nada e de difícil acesso, é um local muito procurado, quer no verão, quer no inverno. No verão é esta paisagem deslumbrante pela sumptuosidade: o caminho através do desfiladeiro com as montanhas rochosas a desafiarem-nos a vista. E o rio, em baixo, sempre ao nosso lado, a escorrer por entre um estreito leito de águas transparentes. No inverno, dizem, é o espectáculo do gelo que cobre as altas montanhas, que se elevam a mais de 2500m, e é destino para esquiadores. Sim, fica-se com a boa sensação de um lugar paradisíaco que vale a pena visitar e ficar, se for possível. Não é o nosso caso. São 15:30h, estão 27ºC e estamos já de saída.

São 16:35h e vamos a caminho de Ribadesella. Já passámos por esta estrada rumo a Oviedo. Aí mais à frente devemos derivar para outra estrada qualquer que nos levará a Ribadesella que, ao que julgo saber, será também uma estância balnear.

E estou a escrever agora porque está imenso calor aqui dentro (24ºC); vai o sol a bater-me na nuca e já estava a fechar os olhos, da moleza, para dormir. Um desperdício. Deve ter sido do excelente almoço que comi. Então, para obviar isso, resolvi vir para estas páginas que quero que transmitam as coisas agradáveis que estou a viver, acordado. Embora “os sonhos” que pudesse ter pudessem constituir uma boa alternativa, penso que o essencial e importante agora é “a realidade”, vivida nesta viagem e, pois então, quero e devo estar de olhinhos bem abertos para não perder pitada dela. Está bom de ver…

A verdade é que quero também que a minha descrição dela não se torne mais aborrecida e estou a alterar um pouco o estilo. Gostava de poder e ser capaz de descrever as sensações da alma em vez de referir que a estrada que vou é esta ou é aquela. É a escrever o que se sente, sobre aquilo que nos rodeia - nomeadamente aqui numa página de Diário de uma Viagem - que faz com que a leitura possa ser mais apelativa para quem lê e, dessa forma, valha a pena perder tempo a ler o que alguém escreveu.

E, de facto, a sensação ou as sensações que os Picos da Europa nos transmitiram são únicas: tenebrosas e perigosas pela sinuosidade da estrada, mas ao mesmo tempo deliciosas e aventureiras, numa transmissão pela alma que nos relega para a nossa pequenez, comparando-nos infinitesimamente com a grandiosidade do mundo onde assentamos.

A cordilheira de Hermidas, que termina quase em Potes, envia-nos para o espírito uma brisa que nos arrepia, de quem entra num labirinto e de onde não sabe se sai. Pelo rio Deva, reparamos que há troços que trazem consigo zonas pedestres, laterais, meias suspensas e que se podem percorrer em harmonia com a corrente do leito. Podemos sentir o quanto deve ser delicioso palmilhar aqueles estreitos caminhos, ao som do gorgolhar das águas, por onde só há espaço para se andar em fila indiana.

Estamos agora de novo a aproximar-nos do mar, mas curiosamente o clima piorou. É suposto irmos para uma zona balnear, onde haja um clima de sol e calor, além de que estamos em pleno agosto, no entanto, são nuvens altas e cinzentas que temos a horizonte. Mas não vai chover, longe disso. E já vejo o imenso Atlântico a acenar-me com os braços aqui perto de Villahormes. 

Esta vai ser uma visita completamente diferente das que fizemos da parte da manhã. E volto a acentuar que deve ter sido, até agora, o melhor deste passeio, embora, obviamente, este ainda não tenha terminado.

Na minha memória trago ainda as sensações do que senti em Covadonga. E vou aqui a regurgitar pensamentos sobre a intensa energia, sobre o imenso tempo de devoção à Santa padroeira. Depois, o percurso por aquele fenomenal desfiladeiro e as imagens que nos ficarão no imaginário, cuidadosamente arrumadas num rolo com um laço colorido à volta, dentro de uma gaveta onde guardamos as partes felizes das coisas boas da nossa vida. E, por inerência, também gravado nestas humildes páginas de histórias e sentidos, mesmo que estas sejam apenas pequenas pinceladas e pouco possam revelar do que se pode interiorizar e sentir.

São momentos únicos que, provavelmente, mereceriam mais tempo para desfrutar, nomeadamente, aqueles a meio do caminho da ribeira, nalguns pontos meio vazia, e de onde se salientavam os calhaus brancos e roliços que esteiravam o fundo do rio. Um rio onde também se criam trutas, um peixe muito cultivado por aquelas paragens.

E a viagem para Ribadesella continua. Pensava há pouco que estávamos a chegar, já se via o mar, mas o certo é que neste momento estamos no meio de uma serra de grandes vertentes apenas salpicada de verde e onde, provavelmente, será inóspito estar.

Já respirámos o ar da montanha, vamos agora respirar um bocadinho do ar do mar. Entrámos em Ribadesella pela carretera N-632 com um rio a receber-nos logo à entrada. Pejado de gaivotas debicando na areia da maré baixa, estas saudaram-nos efusivamente numa belíssima imagem de lusco-fusco e de sombras, como se do crepúsculo se tratasse.

São agora 17:15h e vamos sair para dar um pequeno giro. Está agora bom tempo e o termómetro indica 25ºC.

Ribadesella é um local pacato, do género de São Vicente, onde se está bem, tranquilamente, mas com apenas um tímido movimento turístico. Foi a ideia que me deixou. É uma cidadela com características ribeirinhas onde a pesca também parece ser um atrativo, além dos desportos náuticos, nomeadamente a canoagem, que até tem aqui um monumento, à beira-rio, erigido. Este monumento evoca as provas que aqui se efectuam com uma representação em pedra sobre um plinto, de uma canoa com dois atletas sentados dentro dela com as pás nas mãos, um deles com os braços erguidos de uma vitória, talvez.

É também conhecida esta pequena cidade costeira porque terá nascido por estas paragens a actual princesa Letizia Ortiz, futura rainha de Espanha. Este título, no entanto, diz-nos o guia, só o terá por morte de Juan Carlos, se continuar casada com Filipe de Bourbon, príncipe das Astúrias e se, entretanto, não mudarem a constituição espanhola.

Letizia tem aqui junto ao rio uma placa onde se lê: “Passeo Marítimo Princesa Letizia - Hija adoptiva de Ribadesella - 2007”, colocada em sua homenagem, mas que desta forma trará, com certeza, mais algum protagonismo a este lugar que é, de facto também, muito bonito e aprazível.

E no pouco tempo que aqui estivemos não deu para ver muito. Diria que foi mais uma paragem técnica que outra coisa. Dei, no entanto, conta que há uma pequena praia fluvial, do lado de lá, junto à foz, e para aonde se vai por uma ponte baixa, que é estrada nacional, e que atravessa o rio Sella. Pelo meio, o meu olhar encalhou numa língua de terra onde estão pousadas também imensas gaivotas e, por fim, ao fundo, vê-se uma marina de pequenas embarcações. Deste lado estão também vários pequenos barcos de pesca encostados ao paredão que sustenta o famoso passeio pedestre aqui contíguo.

Os edifícios que encontramos aqui junto à orla marítima são baixos, de apartamentos já com alguns anos, sem requintes, e terão até seis andares de altura. Estes refletem-se, em harmonia de cores de tons ocre e branco, de aspecto mais descontraído, no rio, onde se espelham, transmitindo-nos uma calma enleante que cativa. Há também lojas com artigos artesanais e os cafés do costume, mas estes com caraterísticas provincianas.

Estamos agora a caminho de Gijon onde vamos fazer também uma pequena paragem.

Para trás Ribadesella: o rio, as gaivotas, a marina, os barcos, as lojas, as vistas e… que bem se estava ali. Mas o nosso tempo é outro e perspectiva-se já o regresso com a chegada a Oviedo por volta das oito e meia, com esse desvio por Gijon.

Mas fomos a Gijon? Não. Passámos por Gijon. Havia planos para pararmos, mas não foi possível por causa da imensa confusão. Entrámos na cidade, passámos de autocarro à beira da praia e esta, pudemos ver, estava pejada de gente: milhares de pessoas, quer no areal, quer no calçadão contíguo entre a estrada e a praia. Estava um ambiente típico de férias, com muito sol e calor, gente de um lado para o outro, um pouco caótico mesmo, incluindo o trânsito automóvel por onde andávamos, sem conseguirmos estacionar.

Aqui, pude observar, as barracas armadas em tendas coloridas perfilavam-se em várias ordens pela praia. E estas não são apenas para proteger as pessoas do sol, são, sobretudo, para as proteger do vento que sopra sempre com muita força por estas paragens. Deu facilmente para percepcionar isso, pela agitação das bandeiras hasteadas e pelo varrimento do mar.   

Depois deste giro pela “praia” e da impossibilidade de sentirmos sequer a intensidade do vento que se faria sentir, o autobus fez uma incursão pelo centro da cidade, mas nada que acrescentasse ou enriquecesse a viagem; deu “meia volta” e regressámos. Procurou, no seu percurso, apenas a porta de saída da cidade, rumo a Oviedo e saímos assim, sem honra nem glória, sem termos tido tempo para respirar sequer o ar exterior.

À primeira vista, fica-se com muita pena de não ficar, antes por aqui, por Gijon, em vez de Oviedo. E questiona-se a opção. Parece-me muito melhor e mais apelativa a terra do futebol da equipa do Sporting do que a dos hoquistas das bandas de Oviedo. Muita diversidade (festas, eventos, exposições permanentes, etc.), mais movimento, mais vida e a opção praia, mesmo ventosa. E creio que serão razões económicas “de preço” da promotora deste passeio que nos levam para a cidade industrial de Oviedo em detrimento da “mais desportiva” Gijon. Se eu pudesse escolher, nem hesitaria, escolheria Gijon para ficar.

E vamos já a caminho de casa, ou seja, do nosso hotel e eu daquele pequeno quarto do Ayre Hotel Ramiro I.

Está um clima excelente de 23ºC quando são agora 19:06h e rolamos a boa velocidade na autopista A-66 com chegada prevista para daqui a meia hora. Há muito trânsito, mas sobretudo no sentido contrário. E percebe-se a rivalidade Gijon/Oviedo.

O jantar. Sentei-me à mesa no mesmo lugar de ontem. Esperava ter na minha frente o casal Abreu, já que normalmente respeitam-se os lugares, e foram eles que se sentaram ali. Só que alguém se antecipou e, em vez do casal Abreu, sentou-se um outro grupo onde se inclui uma senhora sozinha. Foi ela própria que sugeriu sentarem-se ali, junto a mim e ela ficou à minha frente. Não valorizei esse facto. É uma mulher que terá passado há pouco tempo os cinquenta. Não é o meu género, mas as pessoas não são o nosso género e revelam-se depois pessoas com quem nos identificamos de alguma forma.

Acabou por ser um agradável e animado jantar com assuntos transversais, onde naturalmente me incluí, embora o tema dominante tivesse sido a visita da manhã aos Lagos dos Picos da Europa (que não fiz), mas admitia-se agora ali a possibilidade de uma passeata até ao centro da cidade, depois da refeição.

O jantar terminou e eu desapareci. Fui, no entanto, ao quarto buscar um blusão e saí na expectativa de reencontrar, às portas do hotel, as pessoas com quem jantara e ir com elas até à cidade. Pareceram-me pessoas acessíveis e uma boa companhia para partilhar e reexplorar a cidade que ontem tanto me desiludira. Com elas hoje seria, provavelmente, muito mais animado e também um bom pretexto para cimentar conhecimentos mútuos.

Chegado ao hall não encontrei quem esperava, mas não perdi muito tempo e, sem me deter, resolvi ir na mesma até ao centro, embora indo por outros sítios, explorando outras ruas, mesmo desertas à saída do hotel, àquela hora tardia. E em boa hora o fiz porque acabei por descobrir uma outra faceta de Oviedo, que ontem me escapara, deixando-me esta cidade, hoje, outra impressão.

Oviedo mostrou-me agora outra roupagem. Aquela cidade com bares, restaurantes, com algum movimento nocturno e animação, que eu esperava encontrar, estava ali mesmo ao meu lado. Só que chegado ao centro, em vez de virar à esquerda, como fiz ontem, devia ter virado à direita e ter-me ia deparado com algo totalmente diferente. Ontem descobri o lado comercial com as lojas obviamente fechadas; hoje descobri a zona histórica e simultaneamente de lazer que ontem procurava. Aquilo que não vi aqui e que vi quer em Burgos, quer em Bilbao, foram as casas de alterne. Aliás, bares de alterne, em evidente, descarada e manifesta atitude de engate, com as mulheres à porta, vi em Santander. Em Burgos e Bilbao pareceram-me, no entanto, mais discrectas e dissimuladas. Aqui não vi nada nesse género, (não que andasse à procura) nesta zona que explorei.

Em sentido contrário, o engraçado e inesperado foi o que acabou por me acontecer. Estava eu absorto nessa busca pela cidade histórica, enquanto tentava perceber na noite escura iluminada apenas por uns focos amarelados projectados para uma imponente igreja, de que construção se tratava, dei comigo a partilhar aquele mesmo monumento com o casal Abreu que, nas sombras da Catedral de Oviedo, a meu lado, também a contemplava e admirava. Acabámos todos sorrindo pela coincidência e acabámos por passar o resto da noite juntos percorrendo com o olhar os vários monumentos daquelas praças. Ainda tirámos fotos e partilhámos conversas.

A certa altura, em plena Plaza de la Constitución, interrompidos até por alguém que nos interpelava com uma pergunta, em espanhol, sobre a localização de algo que procuravam.

Nós, de frente para a Igreja de San Isidro, com o edifício do Ayuntamiento de Oviedo ao nosso lado, falávamos de arquitectura e de literatura, abordando as obras de Eça de Queirós da qual Gracinda Abreu é profunda conhecedora, às obras polémicas de Saramago. Confessei-lhes que me penitenciava porque “Os Maias” nunca os lera totalmente e da literatura de Saramago não sou grande fã. Relativamente aos Maias reconheci a minha falha imperdoável e prometi-lhes, como a mim mesmo, que os iria ler em breve; já quanto à obra de Saramago conheço pouco mais do que os meros títulos de alguns dos seus livros e, de comum, temos apenas o dia da data do nosso nascimento.

De Saramago soube que Luís Filipe de Abreu foi amigo pessoal, mas nunca se considerou adepto, nem afim do anti-Cristo que Saramago revelou mesmo até à sua morte.

E ali estava eu, embrenhado em assuntos como arquitectura e mesmo literatura, dialogando como se fosse um entendido, como se os dominasse, e logo com o casal Abreu, pessoas de um nível com o qual não me posso sequer ombrear, revelando eles uma cultura intelectual e humana acima da média. Além de uma perfeita e conhecedora cronologia dos factos históricos sobre a origem e estilo de obras de que falavam, tinham ainda o conhecimento profundo e exaustivo das respectivas épocas em que ocorreram, assim como os demais detalhes que, efectivamente, o senso comum (onde me incluo) desconhece e que não valoriza. E eu, obviamente, senti-me muito pequeno, ainda que honrado pelo diálogo e pela partilha de conhecimentos.

 A noite avançou e nós fomos regressando ao hotel. A Calle de Calvo Sotello que subimos por entre dissertações, comentários e opiniões para chegarmos ao nosso destino, galgámo-la descontraidamente e sem queixumes.

Sem ter feito por isso, concluí que acrescentei à minha noite um enriquecimento cultural fantástico. Como um quadro, feito, desenhado e pintado a quatro mãos, com uma notável palete de cores, reflexos, formas e sentidos, à imagem de verdadeiros e incomuns artistas, olho neste preciso momento para essa tela, cheia de cores e brilhos, espelhada ainda no meu consciente que me abana e acorda, e sinto-me um homem especial, diferente e feliz a olhar para o acaso que me retribui a sorrir.

Acabo assim agora a reflectir, antes de me abandonar dos pensamentos do que foi este cheio dia, sobre o acaso deste casual encontro que acabei de ter no centro da cidade, totalmente em contraste e em contraciclo com o que procurei no pretexto para a saída. Pois é, ninguém sabe para o que está guardado. Valeu a pena.

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